O Estado de S.Paulo - 26/08
Razões de toda ordem contribuem para o mal-estar social refletido nas manifestações de junho e julho de 2013: precariedade dos serviços públicos e da infraestrutura, insatisfação com a corrupção e incompetência na área pública, custo de vida e inflação, falácia de projetos redentoristas, exorbitantes gastos supérfluos (para eventos desportivos...), violência e desordem generalizadas e por aí vai... Este artigo se refere à violência e à desordem.
O desrespeito à lei, do crime abjeto ao delito banal, que assola o Brasil do topo à base da pirâmide social, tem, evidentemente, razões circunstanciais caso a caso, mas sua dimensão apoteótica se apoia em causas estruturais. A começar, o sentimento de iniquidade social e exclusão que, disseminado pelos meios modernos de difusão da informação, fragiliza os parâmetros morais clássicos (família, religião, solidariedade comunitária...) e põe a violência e a desordem na prática cotidiana das vidas insatisfeitas.
A lógica da socioeconomia moderna inseriu nesse sentimento um estímulo novo, a obsessão consumista, estimulada por propaganda que se vale da imagem e do som sem exigir esforço mental para condicionar a vontade, fazer do consumo o atestado de participação e convencer que todos têm direito ao vociferado com veemência sedutora: carros de desempenho fascinante, motocicletas, celulares multifuncionais, relógios de luxo, iPhones e tablets, toda a parafernália de desnecessidades feitas necessidades pela coerção mental da propaganda-espetáculo compulsiva. Agravante desse processo: sem a novidade da renovação tecnológica espetacularmente trombeteada a cidadania é vista como comprometida e a exclusão, evidenciada; há que consumir sempre mais e o mais moderno, ainda que o modelo anterior satisfaça as necessidades (se existem).
Resultado: é preciso saciar a obsessão consumista ao preço que for necessário pagar e os psicologicamente inseguros se sentem compelidos e até "legitimados" ao delito quando não conseguem (ou por propensão nem sequer procuram) saciá-la nos limites da honestidade. Exemplos simbólicos: arrastão em restaurante e assalto em padaria não pretendem comida e pão, o que leva a esses delitos não é a fome fisiológica - se fosse, mereceriam condescendência -, é a fome psicológica.
Mas, embora relevante, o sentimento de iniquidade e exclusão não é a única razão estrutural da violência e da desordem generalizadas e nem sempre é a protagônica, haja vista que a grande maioria do povo despossuído respeita a lei e o desrespeito é praticado comumente por quem não sabe o que é pobreza e miséria. O descaso do ânimo brasileiro pelo desrespeito à lei é outra razão estrutural de sua abrangência e sua exuberância, inviáveis no nível apoteótico a que chegaram se a população não fosse tolerante ou ao menos conformada.
Grande parte da sociedade tende ao que pode ser assim resumido: as convenções são ignoradas e vale a lógica dos resultados, o caráter pessoal é moldado ao estilo macunaímico - cada um faz o que entende como aceitável por seu código pessoal de conduta, frouxo de conformidade com sua conveniência e sua sensação de impunidade. Assassinatos, sequestros, inescrupulosidade no serviço público, sonegação de impostos, desrespeito a sentenças judiciais, invasões, vandalismo, arrastões, assaltos, bloqueios, drogas e por aí vai, até o trivial atravessar a rua fora da faixa de pedestres, acabam esmaecidos na anomia da leniência coletiva. Delitos escandalosamente graves são superados após indignação cultivada sensacionalisticamente pela mídia, num processo facilitado pela renovação contínua e diversificada.
A complacência da própria lei e o descrédito dos instrumentos da ordem legal são coerentes com a confusão, simpática ao ânimo folgazão brasileiro, entre liberdade democrática e licenciosidade. Mecanismos de redução de penas desfiguram sentenças, licenças festivas propiciam a volta de condenados à criminalidade, menores são inimputáveis porque sua idade não lhes assegura distinguir o certo do errado - embora os habilite (!) a votar aos 16 anos... -, as paradas da maconha (e outras...) são festivamente concorridas (já as anticorrupção contam com escassas centenas, se tanto), o jogo do bicho é delito consentido, as "balas perdidas" são por princípio policiais e a contenção policial da desordem é vista como abusiva e culpada por suas consequências eventualmente graves (por vezes de fato é, mas não como regra geral).
Em suma, a iniquidade social contaminada pelo consumismo, a complacência coletiva correlata à leniência dos códigos pessoais de conduta e a contemporização legal são alicerces estruturais do desrespeito à lei, cujo espectro diversificado impregna a sociedade de cima a baixo.
Completando o quadro, a correção desses alicerces é prejudicada pela atitude comumente dúbia do poder público. Na democracia de massa e de povo propenso ao licencioso, seus atores não raro relutam em fazer valer o rigor da lei, prevalece neles a propensão à contemporização ambígua, de menor risco eleitoral. A censura ao ilegal exigida pela mídia e pelos cargos, geralmente esmaecida na indulgência societária, é frequentemente complementada por manifestação de "condescendência democrática" e por "compensação" ao gosto de organizações e inclinações ideológicas, que preferem a crítica contra a violência policial à condenação da violência de bandidos e vândalos - ou de vândalos bandidos. É a interação da política e do desrespeito à lei, num processo de banalização recíproca.
Todo esse cenário de tendência lúdica desvanece os malfeitos do momento, mas tem seu custo no tempo: ele não impede a acumulação inconsciente de reflexos recônditos, que acabam pesando na saturação psicossocial, mais dia, menos dia contribuindo para a indução de explosões sociais - como aconteceu limitadamente em junho e julho de 2013.
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