O GLOBO - 09/07
No começo, eram pouco mais de cinco mil, coordenados por uma gente desconhecida, quase imperceptível, o Movimento do Passe Livre, o MPL, organizado há vários anos em torno de uma ideia singela e viável: o transporte público gratuito, a tarifa zero. Mas a manifestação, convocada para o dia 13 de junho, em São Paulo, queria apenas anular um aumento — mais um — dos transportes coletivos que (não) servem à cidade.
Parecia o bater de asas de uma borboleta inconsequente, capaz de atrapalhar, numa tarde de outono, o caótico trânsito de uma cidade caótica. Provocou, porém, um terremoto, cujas ondas ainda hoje se propagam.
A repressão demencial da polícia ajudou, vertendo gasolina naquele fogo. Autorizada pelos partidos que compartilham o poder, não condenada por eles, mesmo depois dos excessos de praxe, fez lembrar Primo Levi que, se referindo aos campos nazistas, indagava, melancólico: como se pode espancar um homem sem cólera? A PM brasileira o faz desde que foi criada, no século XIX. A República a manteve, para dar pancada em cidadãos de segunda e terceira classes. Quando é preciso, bate também nos de primeira, embora aí suscite algum escândalo. Não deixa de ser uma medida da democracia brasileira o fato de que até partidos de esquerda se sintam protegidos por ela, por homens armados que têm como símbolo uma caveira, cruzada por facas e revólveres, e que batem e matam sem cólera. Não seriam vândalos? Sim, mas intelectuais de várias procedências têm preferido reservar o termo aos que, explodindo de desespero, picham paredes e quebram vidraças.
Quando milhões de pessoas saíram às ruas, foi possível entrever outras causas do terremoto, radicadas numa outra cólera, a de cidadãos obrigados a se haver com serviços públicos indecentes, embora paguem altos impostos, um dos mais altos do mundo, um paradoxo, apontado por Lucio Gregori, ex-secretário municipal da cidade de São Paulo.
Dinheiro há, porém, para construir excelentes estádios, convertidos em arenas excludentes, reservadas a elites sociais, já entregues em mãos de bem-aventurados consórcios privados. Contudo, não há recursos para oferecer educação, saúde e transportes dignos e de qualidade. Os governos curvam-se às imposições da Fifa e de seus padrões, aprovando uma legislação de exceção, cedendo nacos de território ao controle de uma corporação internacional de negócios, e se obrigando, se for o caso (já foi o caso), a reprimir pessoas que se manifestem dentro dos estádios (perdão, das arenas) ou num raio de dois quilômetros dos campos de jogo. Assim se comportam os partidos do poder: reverenciam a Fifa, mas fazem ouvidos moucos às demandas dos próprios cidadãos.
Nas dobras do terremoto, contudo, apareceram outras exigências, bem mais importantes e decisivas: cidadania plena, participação nas decisões políticas, controle do poder. Trata-se, em suma, de radicalizar o processo democrático, ou seja, democratizar a democracia.
Em contraste com os movimentos sociais que preservam a autonomia em relação a partidos e governos, homens probos declaram que não existe democracia sem partidos. Seria mais exato dizer que não existe democracia sem um conjunto de liberdades, inclusive a de organização partidária. A questão é saber em que medida os partidos continuarão a dominar o regime democrático, como o têm feito até hoje.
Propostos, nas formas atuais, em fins do século XIX, eles se construíram como estruturas centralizadas e hierárquicas, correspondendo a um tipo de civilização industrial em declínio há décadas. Como registrou Jean Viard, a sociedade de redes aprofundou o descompasso entre a dinâmica dos partidos e as exigências atuais da cidadania. Não à toa, desde os anos 1960 evidenciam dificuldades em representar as sociedades. O primeiro grande sinal desta tendência, em escala planetária, veio em 1968, ano quente de questionamentos, quando os partidos foram surpreendidos em cuecas, a reboque dos acontecimentos, catando cavaco atrás das passeatas. De lá para cá, em quase todas as convulsões da história contemporânea, da queda de ditaduras à desagregação do socialismo, passando pelas primaveras que se têm sucedido mundo afora, os partidos têm tido participação discreta, ou nula.
No entanto, protegidos por instituições tradicionais, cultivam ainda a ambição — desmedida — do monopólio da representação política, o que não está mais de acordo com as sociedades complexas que passaram a existir a partir da segunda metade do século XX.
Se o terremoto atual se prolongar na forma de um ciclo longo de manifestações, como previu André Singer, não será possível evitar esta questão. Trata-se da construção de um regime político em que a cidadania, organizada autonomamente, possa ter voz e poder de decisão. Se êxito houver nesta aventura, a primavera que chegou no inverno atravessará ainda muitos verões.
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