Valor Econômico - 14/06
As cenas de uma manifestação juvenil com ônibus queimados, catracas quebradas e engarrafamentos são assistidas, do sofá de casa, por uma franca maioria de brasileiros que hoje é favorável à redução da maioridade penal. Só pode dar em encrenca.
É provável que os 92,6% de brasileiros favoráveis a jovens deliquentes na cadeia (pesquisa CNT/mda) refiram-se a crimes a mão armada, mas a demanda por endurecimento penal reflete uma sociedade menos afeita a contestações da ordem.
Os manifestantes saíram à rua em várias capitais. Como em algumas conseguiram reverter o aumento de tarifa, acham que podem ter sucesso nas demais. O policial que, apedrejado, não disparou contra os manifestantes, parecia sugerir que a audiência não seria atraída por jovens idealistas. Nas transmissões ao vivo ontem já parecia haver dúvidas sobre quem detinha o monopólio da violência.
Parece exagerada a comparação do movimento do passe livre com os acampamentos Wall Street ou com as rebeliões da praça Tahir. A conjuntura nacional é turbulenta mas não se pode dizer que o Brasil viva uma crise econômica ou política.
Também não há paralelo com a mais recente manifestação juvenil da vizinhança, no Chile, onde as universidades, maciçamente privadas, endividaram famílias por várias gerações sem emprego capaz de quitar o crédito escolar. As diferenças não autorizam a conclusão de que são vândalos os de cá e ativistas os de lá.
Assemelham-se todos pela dispensa da mediação de imprensa, sindicatos ou organizações estudantis. É pelas redes sociais que forjam identidade. Se o passe livre tem sido bem sucedido é porque gera, entre seus participantes, a sensação de que pertencem a algum lugar.
E que lugar é esse?
Dos jovens brasileiros entre 18 e 30 anos, 23 milhões (55%) pertencem à classe C, com renda mensal entre R$ 219 e R$ 1.019.
De cada R$ 100 que recebem, destinam R$ 70 para ajudar nas despesas de casa.
As pesquisas os situam como uma geração que tem o dobro da escolaridade dos pais, acessam notícias pela internet, são formadores de opinião na família e adotam posturas menos conservadoras em temas morais que seus pais.
Duas pesquisas, uma com amostra geral (CNT/mda) e outra com jovens da classe C (Datapopular), mostram o confronto. Enquanto entre os brasileiros, em geral, o casamento gay é aprovado por 37%, entre jovens emergentes chega a 49%.
Entre 2002 e 2010 os universitários da classe C saltaram de 6 milhões para 9 milhões. Serão 11 milhões em 2014. São o público alvo do 1,6 milhão de bolsas que o Prouni já distribui desde 2005.
Nas universidades federais, os jovens oriundos de famílias com renda até cinco salários mínimos, ocupam 67% das vagas.
Não parece haver dúvidas de que é uma geração que usufrui de mais oportunidades que seus pais, mas há crescentes dificuldades no cotidiano para usufruí-las. De tão lotado, o metrô de São Paulo, por exemplo, transporta, por quilômetro quadrado, quatro vezes mais passageiros que o de Nova York.
Os jovens têm celulares e laptop. Empregados, alcançam um plano de saúde, mas frequentemente o atendimento concorre em precariedade com o dos hospitais públicos.
Mais da metade dos universitários do país usa transporte público. Pouco mais de 18% vão de bicicleta, a pé ou de carona e 21% usam carro.
Estão entre os cerca de 25% dos passageiros de transporte público em todo o país que usufruem de descontos. Pedem tarifa zero e, pelos depoimentos que se colhem nas suas manifestações, esperavam, de uma administração petista, melhor acolhimento de suas reivindicações.
Pegaram no contrapé o prefeito Fernando Haddad (PT), que fez da melhoria do transporte público o carro chefe de sua campanha eleitoral.
Haddad segurou por seis meses o reajuste da tarifa que já estava congelada por dois anos quando assumiu. Atendeu ao apelo antiinflacionário da presidente da República e a seus próprios temores em estrear na cadeira sob protestos populares.
Anunciou 150 novos corredores de ônibus e montou uma engenharia financeira para viabilizar o bilhete único mensal mas falhou em descasar seu lançamento do reajuste de tarifa.
Argumenta que reajustou abaixo da inflação, mas a moçada do passe livre quer justar contas com o passado. Retroage ao lançamento do Real para sustentar que a tarifa subiu mais que os demais preços da economia nesses quase 20 anos.
As manifestações antecipam os embates que a partir de agora serão cada vez mais frequentes entre o Palácio do Planalto e a federação. Com a pressão sobre a política fiscal como instrumento antiinflacionário, pouca margem de manobra tende a ser aberta para governadores e prefeitos.
Em meio à avalanche de desonerações destinadas a alavancar a economia, Haddad pediu para que a Cide sobre a gasolina, hoje zerada, voltasse a ser cobrada com o objetivo de constituir um fundo de financiamento ao transporte público. Brasília fez ouvido de mercador à proposta.
Numa de suas melhores peças de campanha durante o horário eleitoral gratuito, Haddad dizia que o governo Lula havia melhorado a vida das pessoas da porta de casa para dentro. E que ele se dispunha a trabalhar por melhorias da porta para fora.
O que se assistiu ontem no Teatro Municipal e em outros cantos do país foi uma cobrança contundente dessa promessa. Pelo que anuncia a conjuntura econômica, é só o começo. Cooptados, os movimentos sociais tradicionais perderam a capacidade de organizar a reação para preservar os ganhos e mobilizar novos avanços.
Os manifestantes de ontem agem noutra frequência. Além da violência, as críticas mais frequentes ao movimento que se colhem nas redes sociais é que ali não está representada a base da pirâmide social, a dos brasileiros que vão comer menos para continuarem a se deslocar. Para muitos jovens que seguem até o final dos cursos universitários sustentados pelos pais, o protesto pode ter virado um programa de fim de tarde. Mas se há algo a louvar nesses eventos marcados por excessos de todos os lados é que as manifestações parecem resgatar o coletivo para que a moçada pode ter interesses que vão além do seu umbigo.
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