O ESTADÃO - 17/06
O que mais me chamou a atenção no comentado artigo em que a revista britânica The Economist (edição de 9/6) fez ácida crítica à política econômica brasileira não foram as ironias dirigidas ao ministro Mantega, e sim o sugestivo subtítulo da matéria: Como desperdiçar uma herança - e como ela pode ser facilmente recuperada, em tradução livre. Concordo com a primeira parte desse enunciado (o desperdício da herança), mas não creio que seja tarefa fácil a sua recuperação.
O presidente Lula, ao assumir seu primeiro mandato, em 2003, recebeu um país com reformas econômicas profundas, a maior parte implantada no governo FHC. A hiperinflação havia sido banida pelo Plano Real, a economia estava mais aberta e competitiva e estatais ineficientes haviam sido privatizadas. O Banco Central contava com ampla autonomia e operava, desde 1999, sob o então moderno regime de metas inflacionárias e com taxas flutuantes de câmbio. O chamado tripé macroeconômico completava-se com metas fiscais claras, regidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Apesar desses fatores favoráveis, Lula assumiu a Presidência tendo que enfrentar dois sérios problemas: dada a sua origem política, necessitava conquistar a confiança dos agentes econômicos e urgia debelar um surto inflacionário que se instaurou exatamente pelo receio de que o governo petista cumprisse o ideário historicamente defendido pelo partido. Houve fuga para ativos reais e megadepreciação do real, com inevitável impacto inflacionário.
Mas Lula surpreendeu positivamente, não só por manter todos os pilares macroeconômicos estabelecidos no governo FHC, mas também por prosseguir com reformas microeconômicas, com destaque às que propiciaram o crescimento do mercado de crédito doméstico e a reorganização do Sistema Financeiro de Habitação. O setor imobiliário, então semiparalisado, ganhou significativo impulso. O surto inflacionário foi debelado graças à redução de gastos públicos, em 2003, e à ampla liberdade dada ao Banco Central para gerir a política monetária.
Em decorrência do forte crescimento global, especialmente da China, as commodities valorizaram-se, o que provocou expressiva melhora da nossa relação de trocas. Em outras palavras, cada unidade de produto exportado pelo Brasil podia comprar cada vez mais bens produzidos no exterior.
Mas foi exatamente nesse ponto que a herança começou a ser desperdiçada. A maior capacidade para importar bens e serviços e o forte influxo de capitais externos serviram principalmente para financiar o crescimento acelerado do consumo e dos gastos públicos, não para expandir investimentos, melhorar a infraestrutura, a qualidade do ensino e outras ações para elevar a produtividade.
Em resposta à crise financeira global iniciada em 2008, o governo empreendeu um bem-sucedido programa contracíclico de expansão monetária e fiscal, mas a rápida retomada do crescimento chinês que voltou a jogar para cima os preços das commodities, a queda espetacular das taxas internacionais de juros e a continuidade dos estímulos internos quando os mesmos já não eram mais necessários fizeram com que a demanda doméstica voltasse a crescer fortemente, em claro descompasso com a capacidade de expansão da oferta.
A miopia econômica do governo, especialmente na gestão Dilma Rousseff, impediu-o de ver que o declínio do crescimento se devia a restrições de oferta, especialmente pela superocupação da força de trabalho e pelo caos da infraestrutura. Abusaram dos estímulos à demanda e elevou-se fortemente o comprometimento de renda das famílias com dívidas, daí o crescimento da inadimplência.
As metas de superávit primário foram virtualmente abandonadas sob a alegação de que o importante era controlar a relação dívida líquida/PIB. Discordo. O conceito de dívida líquida não é um bom indicador da qualidade da política fiscal. Mas, mesmo que fosse, é fácil mostrar que, dados o pífio crescimento econômico, o alto custo implícito de financiamento dessa dívida líquida (14% ao ano) e a forte queda do superávit primário (o verdadeiro, não o contábil), mesmo esse indicador possui tendência ascendente.
A pressa em elevar o crescimento e conter a inflação sem custo político levou o governo a reintroduzir o controle de preços, a restringir a autonomia do Banco Central, a retomar políticas protecionistas e a distribuir benesses a setores escolhidos à custa do erário. Apesar disso, a inflação galopa e o déficit externo explode.
A credibilidade da atual política econômica cai perigosamente. Artigos como o da revista The Economist aqui citado proliferam na imprensa internacional especializada. Após a perspectiva negativa dada pela Standard & Poor's (S&P) para o risco soberano, não se pode descartar uma sequência de rebaixamentos dessas classificações. E as condições favoráveis da economia mundial estão se invertendo: a era de commodities supervalorizadas e de juros norte-americanos baixos começa a ficar para trás.
O pessimismo doméstico é ainda maior. Não é por pouco. As margens operacionais das empresas, de quase todos os setores, estão deprimidas, principalmente pelos custos salariais e pela ineficiência da infraestrutura. As expectativas inflacionárias deterioram-se significativamente e só agora parece que foi devolvida ao Banco Central alguma autonomia para agir.
Por exemplo, mesmo o necessário e inadiável aumento do juro básico, dado o atraso com que foi iniciado e as distorções introduzidas pelos equívocos da política econômica, pode resultar em efeitos colaterais indesejados. O governo forçou a redução dos spreads bancários, apesar do crescimento da inadimplência. Agora os bancos começam a elevar os juros do crédito para recuperar margens. Se a isso se somar o repasse do aumento do custo de capitação imposto pelo aperto monetário, pode ocorrer um novo - e perigoso - surto de inadimplência.
Enfim, o Brasil está metido em uma enorme enrascada macroeconômica. Ao contrário do que pensa a revista The Economist, não será fácil recuperar a herança desperdiçada.
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