Valor Econômico - 02/05
Garantir o direito de um indivíduo ou de um grupo faz parte da própria razão de ser da Justiça, em qualquer país que siga o modelo de Montesquieu. Conflitos institucionais, antepondo o Judiciário aos dois outros eleitos pelo povo, portanto, são previsíveis e pertencem à crônica mundial. O caso dos últimos dias no Brasil, com seu jogo de ameaças mútuas entre o Congresso e o STF, não foi o primeiro e não será o último. O problema ganha gravidade quando o conflito entre Poderes é um método de ação política e a desinstitucionalização é uma meta.
Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner deve conseguir do Congresso na próxima semana a aprovação de uma reforma do Judiciário que encerra a sua breve experiência como poder independente (apenas dezesseis anos).
Pela reforma, uma liminar contra o Estado só poderá ter vigência caso a Presidência não recorra da decisão. Se recorrer, fica automaticamente suspensa. Sem recurso, vale por seis meses no máximo, prorrogáveis por outros seis.
Atualmente, os juízes são escolhidos ou removidos por um Conselho Nacional de Magistratura, em que o governo tem cinco vagas em 13. O número de conselheiros agora sobe para 19 e 12 das vagas serão decididas em eleições diretas, disputadas pelos partidos. Como o quórum para deliberação passou de maioria de dois terços para a absoluta, basta ao governo eleger a metade dos conselheiros para ter controle do órgão.
A reforma não fica nisso: foi criada uma nova instância do Judiciário, que passa de dois para três foros antes da Corte Suprema. Os futuros integrantes da nova jurisdição serão escolhidos pelo novo Conselho de Magistratura politizado e rateado entre os partidos.
Esta será a quarta reforma do Judiciário na Argentina nos últimos vinte e cinco anos. Foi para conter o leilão de vagas da magistratura no Congresso, patrocinado por Menem, que surgiu na revisão constitucional de 1994 a criação de um modelo autônomo, inspirado na legislação francesa. A independência do Conselho já havia sido atenuada na penúltima reforma, a de 2006, quando o peso do governo dentro do colegiado aumentou e a Presidência ganhou poder de veto sobre a indicação de juízes.
"Com certeza haverá uma nova reforma caso a oposição ganhe as eleições presidenciais de 2015. A disputa pelo controle político da Justiça é tão grande que impede qualquer modernização. Continua em vigor uma norma que obriga a acondicionar os expedientes judiciais em envelopes que são lacrados com costura de linha e agulha. "É uma regra criada há 150 anos e ninguém se lembrou de revogá-la", disse o advogado Rafael Gomez Diez, diretor de assuntos legais de uma petroleira.
O populismo na Argentina está longe de ser um termo pejorativo. É condição assumida e reivindicada para si pelo kirchnerismo. Um dos principais teóricos deste modo de atuar politicamente é o argentino Ernesto Laclau, autor de "A Razão Populista" e um dos intelectuais admirados por Cristina.
Laclau afirma que há pressupostos básicos para a construção de uma liderança: a dimensão anti-institucional, em que a ordem usual das coisas é desafiada; e a construção de uma fronteira interna ideológica, em que a base sempre está mobilizada contra um inimigo. O vilão da ocasião é o Poder Judiciário. No recente encontro de Cristina com a presidente Dilma Rousseff, o secretário jurídico do governo argentino, Carlos Zanini, fez a jornalistas brasileiros uma definição que sintetiza esta lógica: "Quem está contra a reforma está a favor da defesa dos monopólios".
"É preciso definir quem é o inimigo do povo e constantemente renová-lo. O inimigo é necessário para a explicação de todos os problemas. Sempre há uma corporação nova contra quem lutar. É um truque velho. Repugnante mas eficaz", comentou o historiador Luis Alberto Romero, que aposentou-se em 2011 do Conicet, uma mistura de IPEA com CNPq da Argentina, protestando contra a politização do órgão.
No próximo dia 25, se completam dez anos da posse de Nestor Kirchner, marido e antecessor de Cristina. Como o mandato da atual presidente irá até 2015, serão, pelo menos, doze anos ininterruptos de uma mesma hegemonia política, algo que não ocorre na Argentina desde 1930.
O primeiro inimigo do povo definido pelo kirchnerismo veio dos quartéis. De forma espetacular, Kirchner colocou toda uma guarnição em forma e disse, em cerimônia gravada: "Eu não tenho medo de vocês".
Com este gesto e outros, dos quais o mais concreto foi o de revogar todas as normas que preservavam a impunidade dos líderes de um regime militar genocida, Kirchner se apropriou de uma causa que até então era transversal na sociedade argentina.
Em seguida surgiram como adversários os monopolistas do comércio, o sistema financeiro internacional, o grande latifúndio e, já no governo de Cristina, o conglomerado de mídia Clarín. No ano passado, reingressou no repertório o nacionalismo, com o relançamento da reivindicação sobre as ilhas Malvinas e a expropriação da YPF.
"O governo tem sido muito eficiente em levantar bandeiras inquestionáveis. Quando o governo abraça causas que já fazem parte do subconsciente argentino, a oposição não consegue estabelecer uma linha congruente. O espaço para a construção de um discurso opositor desaparece, ninguém pode se identificar com o inimigo", comentou Romero.
Ao mirar suar artilharia contra o Judiciário, Cristina não só remove uma eventual barreira contra o exercício pleno de seu poder, mas escolhe um alvo que só é avaliado positivamente por 27% da população, segundo o informe Latinobarometro de 2011, da pesquisadora chilena Marta Lagos. Adestrada a justiça, uma avenida se abriria para Cristina para escolher a próxima vítima e controlar o jogo de 2015. Sua debilidade é que há uma eleição parlamentar decisiva em outubro deste ano. O coquetel de inflação alta, disparada do dólar, baixo crescimento e pouco investimento sugere que o resultado é incerto.
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