O GLOBO - 21/05
Rever a Lei da Anistia é um revanchismo que tenta o impossível e indesejável: pôr o país numa máquina do tempo e levá-lo para um período de tensões já superado
Num continente em que nem sempre os processos evolutivos costumam se dar em linha reta, o Brasil tem sido uma das positivas exceções. Depois de transitar no ciclo de ditaduras militares com a região, o país fez parte do comboio da redemocratização, mas, ao contrário de vizinhos, tem conseguido consolidar instituições de fato republicanas.
Enfrentou dentro do estado de direito um impeachment de presidente e experimentou, sem qualquer turbulência, a chegada ao poder pelo voto de um partido de esquerda, no Planalto há mais de uma década.
E passa, no momento, com o trabalho da Comissão da Verdade, pela necessário esclarecimento sobre o paradeiro de desaparecidos na guerra suja do enfrentamento entre militantes de esquerda — nem todos guerrilheiros — e o aparato repressivo que funcionou nos porões de quartéis. De maneira mais ativa depois do AI-5, no final de 1968, quando a ditadura militar se radicalizou.
É parte, ainda, da agenda da Comissão o inventário da atuação de agentes públicos em atos violentos — torturas, assassinatos etc. — contra presos políticos. Também aqui o Brasil se diferencia de vizinhos — e precisa continuar assim.
A Comissão da Verdade completa um ano de funcionamento tendo identificado 1.500 daqueles agentes, colhido centenas de depoimentos, realizado muitas audiências públicas, um balanço alvissareiro dentro do seu propósito que é dar uma resposta às vítimas do regime, a seus familiares e esclarecer os fatos daqueles tempos para que nunca mais voltem a acontecer.
Sem entrar no campo da revanche — e devido a razões jurídicas, históricas e políticas. Ao contrário de em outras ditaduras latino-americanas, a anistia foi concedida no Brasil de forma recíproca, mediante ampla negociação entre o regime e a oposição, como parte do processo de redemocratização, realizado sem traumas, e que, por isso mesmo, resultou numa democracia estável.
Entende-se, portanto, por que a Lei da Anistia, de 1979, aprovada pelo Congresso, teve a sua característica de reciprocidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010. Aspecto, como teria de ser, respeitado na criação da Comissão da Verdade, empossada no governo Dilma Rousseff, uma vítima da ditadura.
Não cabe à Comissão encaminhar qualquer nome ao Ministério Público e à Justiça para ser processado por supostos crimes cometidos na repressão política, nem propor qualquer inciativa neste sentido. Seria, no mínimo, ilegal.
O mesmo ocorre com projeto da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), apresentado para suspender a anistia concedida aos agentes públicos. Além da ilegalidade, a iniciativa tenta o impossível e indesejável: colocar o país numa inexistente máquina do tempo e levá-lo para um período de tensões já superado.
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