GAZETA DO POVO - PR - 13/04
A Coreia do Norte diz ter iniciado preparativos para uma guerra nuclear contra os Estados Unidos. Chama a atenção a imagem de seu líder em reuniões tensas com chefes militares, convocando a população para manifestar seu patriótico apoio à defesa da nação. O detalhe interessante, porém, é que a guerra não existe; apenas a população norte-coreana imagina que o mundo esteja à beira de uma catástrofe nuclear a demandar o exercício de coragem de seus líderes e a ação de sua população em defesa da nação.
O que houve foi a morte do ditador que controlava a Coreia do Norte havia décadas, e a assunção de seu filho ao poder com a necessidade de reafirmação, na mente do povo coreano, de sua necessidade de continuar vivendo submetido ao mesmo regime autoritário. Isso se dá porque os regimes autoritários somente persistem quando fazem os cidadãos interiorizassem a ideia de que o regime é bom para eles por protegê-los. Por isso o patriotismo ufanista e os sentimentos nacionalistas extremados sempre foram marcas de regimes autoritários, pois mantêm permanente conflito imaginário contra o restante da humanidade, afirmando a necessidade de que as estruturas de poder se mantenham inalteradas.
A experiência atual da Coreia do Norte põe em manifesto elementos do processo de interiorização da necessidade de inalterabilidade do poder: a afirmação de um inimigo abstrato comum, a geração de pânico em relação ao inimigo e a apresentação da necessidade de reação violenta para conter o inimigo.
Trazida a questão para a América Latina, fica claro que as preocupações do papa Francisco – manifestadas em suas primeiras falas e ações políticas com relação à estruturação latino-americana do poder – são de todo procedentes, pois a agressividade social existe e é um dado inegável, decorrente de múltiplos fatores, mas a sua maximização discursiva é motivo de alerta e receios, evidenciando uma atuação permanente para gerar a sensação de que se está vivendo em uma sociedade na qual a violência impera e o inimigo que a gera não consegue ser visto, mas atende pelo nome genérico de impunidade. Dessa forma, há um inimigo comum e abstrato, com relação ao qual se experimenta o pânico coletivo; e, para combatê-lo, é necessário o emprego de meios de força dotados de violência e cerceadores das liberdades.
Assim como a guerra hoje travada pelos norte-coreanos é uma mentira, mentirosa também é a guerra latino-americana contra a impunidade, sendo manifestações da mesma estratégia de diminuição de garantias individuais e fortalecimento do poder por quem o detém. No sistema punitivo brasileiro, por exemplo, ocorreu uma pulverização das prisões preventivas, antecipando a punição sobre pessoas tecnicamente inocentes; adota-se em larga escala a proclamação retórica de razoabilidade para flexibilizar regras processuais, desde que seja para chegar ao resultado de condenação; as penas fixadas superam em muito a medida de culpabilidade e proporcionalidade em relação ao delito praticado; as garantias dogmáticas são manipuladas, como o conceito de dolo eventual hoje estendido para situações que nele não se enquadram; e a defesa dos acusados passa a ser vista com hostilidade e a sofrer perseguições.
O resultado final do combate ao inimigo comum é, assim, o maior controle pelo Estado sobre a liberdade das pessoas. A nota preocupante, porém, é que a América Latina vive a ilusão de democracia inatacável, sem a percepção da sua fragilidade e da aproximação que experimenta com conteúdos de forte índole autoritária.
Nenhum comentário:
Postar um comentário