FOLHA DE SP - 13/04
O sertanejo é um forte, mas há muito está exausto; hoje, a tarefa de mudar a saga de seca é de todos os brasileiros
"A água de beber está sendo racionada no Recife dos rios cortados de pontes. Dois terços do território de Pernambuco são quase um Saara. Os efeitos da seca do sertão já alcançaram o agreste, a zona da mata, o verde litorâneo. A caatinga está desnuda.
A produção de cana de açúcar está reduzida em 30%, a de milho, feijão e mandioca, em quase 100%. O rebanho bovino foi diminuído em quase 40%, e o caprino-ovino, ainda mais. A fábrica da Coca-Cola em Suape parou de produzir por falta d'água.
Fazendeiro que teima em resistir já comprou seu rebanho duas vezes, pois o que hoje vale seu gado já lhe custou o dobro em ração, e os animais continuam morrendo de fome. A praga da cochonilha destrói as palmas forrageiras."
Esse texto não é fantasia inspirada no "Livro Revelação" do apóstolo João, do Novo Testamento, nem tampouco uma narrativa delirante. É o relato do agrônomo e fazendeiro pernambucano Pio Guerra, publicado no "Diário de Pernambuco", para leitores que não apenas testemunham mas sentem na carne o que está descrito.
E não houve quem julgasse o autor exagerado. Suas palavras calaram fundo, pela responsabilidade e pela qualificação desse sertanejo que preside a Federação da Agricultura de Pernambuco.
Há um século e meio, Euclides da Cunha calculava que a crueldade da seca --essa mesma que hoje maltrata 30 milhões de nordestinos-- se repetia a cada período de 11 ou 13 anos. Quem se dá ao trabalho de ler documentos e diagnósticos sobre a seca no Brasil se vê perplexo diante da constatação de que já conhecia grande parte do material produzido desde 1690, quando têm início registros da série histórica do fenômeno.
Triste sinal da convivência rotineira com histórias de seca e dor, embora não se trate de fatalidade, mas de questão equacionável. Não por tentativas de trapacear o "jogo da chuva", ignorando a meteorologia dos trópicos, que, nos melhores anos, faz cair 91% das águas no primeiro semestre.
Soluções existem. Falta a mobilização nacional que reverta esse processo sazonal de devastação, inaceitável no atual estágio do país. Hoje temos pesquisa tecnológica, planejamento econômico e políticas públicas adequadas à situação regional.
São instrumentos capazes de reverter "a favor", como concluiu nos anos 1930 do século 20 o holandês Von Thilling, depois de longa visita à região.
"Bendita a terra onde não chove...", disse o holandês. Evidentemente, e porque estava próximo ao rio São Francisco, acrescentou: "...Mas onde existe água para irrigação".
Não repitamos, nem naturalmente desdenhemos, ações anteriores inspiradas por secas e que se mostraram ineficazes.
No início, foi a retórica do imperador d. Pedro 2º, prometendo vender, se necessário, "a última joia da Coroa". Desde então, a história demonstra que secas avassaladoras inspiraram supostas soluções definitivas.
O Banco do Nordeste foi o subproduto da terrível seca de 1952. Nova estiagem, seis anos depois, fez Juscelino Kubitschek projetar a Operação Nordeste.
E, inspirado por Celso Furtado, JK concebeu a Sudene. Ao lançar, confiante, a nova Superintendência no estio de 1957, Juscelino discursou: "Esta é a última seca que assola o Nordeste".
As repetidas estiagens ajudam a explicar a longevidade do Departamento Nacional de Obras Contra Secas, criado em 1909. Estudos do engenheiro Jean Saraiva mostram que os governos destinaram ao Denocs o total de US$ 22 bilhões em valores atuais.
Mas ele calcula que só a metade tenha chegado efetivamente à região, para acudir o sertanejo. O restante foi consumido no custeio do próprio Dnocs, que chegou a ter 13 mil funcionários. Um exagero que só reforçou o discurso da "indústria da seca".
Assim, contam-se séculos em que o homem do sertão figura como um predestinado à miséria, sem direito a futuro. Deixo, aqui, um convite à reflexão. O sertanejo é, antes de tudo, um forte, como disse Euclides da Cunha. Mas há muito está exausto, e, hoje, a tarefa de mudar a saga eterna de seca e sofrimento é de todos os brasileiros.
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