O Estado de S.Paulo - 14/04
Um ano depois da morte do filho famoso, lá fui eu conhecer dona Chiquita, numa casa na Pampulha, em Belo Horizonte. Quando saí, horas depois, tratei de reter no papel um pouco do que me contara a mãe do Joãozito, quer dizer, João Guimarães Rosa, naquela tarde de 1968. Queixava-se da memória fraca - e no minuto seguinte se desmentia:
"Joãozito pegava o jornal e ficava perguntando ao pai o nome das letras. Ou os números pintados nos trens que passavam. O Florduardo achava uma graça, comprou lápis de cor e papel, fez assinatura do almanaque Tico-Tico. Quando abrimos os olhos, o Joãozito estava lendo e dando notícia de tudo. Tinha só 4 anos, um fenômeno."
Daí a pouco estava fazendo um jornalzinho. Desenhava as pessoas, o Juca Bananeira, que depois virou personagem de histórias suas. A avó guardava os jornaizinhos, mas um dia houve uma inundação - e foi assim que ficamos sem conhecer o jornalista Guimarães Rosa.
"Brincava sozinho. Fazia uma fieira de sabugos de milho, formando carros de boi. Ou bichinhos de chuchu, principalmente bois, sua mania. E os gatos! Adorava! Basta dizer que não estava presente quando a filha Vilma teve o primeiro filho: sua gata predileta também estava dando à luz a primeira ninhada."
Outro brinquedo era de missa. Improvisava uns paramentos, ajeitava o altar e convocava os fiéis - meninos das vizinhanças. Foi coroinha na igreja de São José, em Belo Horizonte. E durante a vida inteira carregava um terço, rezava em todo lugar, na rua até, em tempo de ser atropelado.
"Joãozito pegava um livro - lia de tudo, até uns livros nada recomendáveis para a sua idade. Sentava na calçada, os outros iam chegando, ele largava o livro e ficava contando histórias. Gostava também de ouvir, especialmente a dona Jerônima, a mesma que me contava histórias quando eu era menina. Não dizia palavra se a gente não lhe desse fumo para mascar."
Com 6 anos, trocou sua Cordisburgo por Belo Horizonte. Foi estudar no Grupo Escolar Afonso Pena. Depois, no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei. Mas não se acostumou com a comida e com uns colegas que lhe faziam medo, e voltou para a capital. Matriculado no Colégio Arnaldo, fugia quase toda noite - pela janela! Porque além de sonâmbulo o Joãozito tinha uma saudade enorme de casa.
"Era magrinho, fraco, o médico mandou cortar qualquer excesso. Os estudos demais da conta, as leituras. Mas o Joãozito não tinha jeito: de manhã, eu achava livros embaixo do travesseiro dele. Rapaz, lia até altas horas, os pés na bacia de água gelada para não dormir. O avô dava dinheiro aos netos, e o dele ia todo para livros e doces - era com isso que se enfiava no quarto, lendo e comendo."
Dona Chiquita foi fazer uma visita e levou o Joãozito. O menino ficou rodando pela casa - e surpreendeu um casal de namorados se beijando. Dia seguinte, na farmácia, dá com o rapaz do beijo comprando um vidro de purgante: "Uai, moço, pegou indigestão de beijo?!"
"A primeira namorada era filha de alemães. Quando ela se mudou para São Paulo, ficou desesperado. Arranjou emprego, chegou a vender o violino, que começava a aprender. Mas voltou de São Paulo muito desiludido e começou a namorar uma vizinha, que acabou sendo sua primeira mulher."
Nunca foi de cinema. Uma vez, saiu com a irmã para a matinê. Começaram a demorar e a mãe foi atrás deles. No cinema, encontrou um guarda conhecido da família: "O filme já terminou, dona Chiquita, mas os meninos ficaram dormindo na cadeira e eu tive pena de acordar".
"Gostava de conversar, horas e horas. Vinha aqui e a casa se enchia, ele falava, ria, abraçava todo mundo, contava casos. Conosco, era meigo, carinhoso que só vendo. Não faço diferença entre os filhos, mas o Joãozito era diferente. Comigo e com o pai, então! Mandava coisas, dinheiro, telefonava. Ainda hoje, quando pego no telefone, me lembro é dele, do jeito que tinha pra dizer 'mamãe', carregando a palavra de carinho. Tão amoroso. Sabe, às vezes penso que por isso é que ele morreu tão moço (aos 59 anos), era comoção demais em tudo."
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