O GLOBO - 27/03
Para os incultos mortais como eu, nem sempre é possível decifrar os desígnios da justiça, entender a lógica de muitas de suas decisões. Por exemplo:
Um motorista em alta velocidade, bêbado, voltando de uma balada, ziguezagueando, atropela um ciclista, arranca-lhe o braço, que cai dentro do carro, pega, joga num riacho, foge, volta depois, é preso, permanece sete dias na cadeia e é solto. Os médicos disseram que se ele, estudante de psicologia, tivesse prestado socorro, o braço poderia ter sido reimplantado. Ele ficou na prisão menos tempo do que a vítima no hospital, de onde só saiu anteontem. O desembargador alegou, para lhe conceder habeas corpus, que o atropelador "não tem envolvimento criminal anterior". Quer dizer: é provável que só reincidente ele permaneceria na prisão.
Outro caso. A chefe da UTI de um hospital é denunciada por vários homicídios duplamente qualificados e formação de quadrilha, num episódio macabro que chocou Curitiba. Como vem sendo noticiado, ela "antecipou a morte" (parece que hoje ninguém mata mais, apenas antecipa a morte) de sete pacientes por asfixia, depois de receberem medicamentos que paralisaram seus movimentos respiratórios e após terem reduzida a ventilação por aparelhos. A médica esteve presa um mês e, como o processo corre em segredo de justiça, não se sabe por que foi libertada, assim como outros cinco cúmplices.
Enquanto isso, no Rio, como mostrou o artigo "Incompreensível e injustificável", publicado nesta página no dia 20, o líder comunitário da Rocinha William de Oliveira está preso sem sentença há um ano e cinco meses, acusado de vender armas para um traficante. A prova parecia robusta: um vídeo exibindo a transação. Acontece que se tratava de uma farsa com motivação política. Um morador da favela, em depoimento em juízo, acabou confessando que, por ordem do tráfico, ele editara o material para incriminar e desmoralizar o inimigo, cujo prestígio junto aos moradores e às autoridades incomodava o poder dos bandidos locais. A adulteração foi confirmada por dois peritos, um da própria Polícia Civil e outro da defesa, Ricardo Molina.
Na semana passada, a justificativa para mais uma negativa de liberdade provisória foi a suposta "periculosidade" do acusado, sem levar em consideração que sua ação na Rocinha há dez anos resistindo ao tráfico foi reconhecida por organizações de Direitos Humanos e pelo governador Sérgio Cabral.
Diante disso, vai convencer quem está preso há 17 meses sem culpa formada que a Justiça é igual para todos, mesmo que o acusado seja, como William, negro, pobre e favelado.
Um motorista em alta velocidade, bêbado, voltando de uma balada, ziguezagueando, atropela um ciclista, arranca-lhe o braço, que cai dentro do carro, pega, joga num riacho, foge, volta depois, é preso, permanece sete dias na cadeia e é solto. Os médicos disseram que se ele, estudante de psicologia, tivesse prestado socorro, o braço poderia ter sido reimplantado. Ele ficou na prisão menos tempo do que a vítima no hospital, de onde só saiu anteontem. O desembargador alegou, para lhe conceder habeas corpus, que o atropelador "não tem envolvimento criminal anterior". Quer dizer: é provável que só reincidente ele permaneceria na prisão.
Outro caso. A chefe da UTI de um hospital é denunciada por vários homicídios duplamente qualificados e formação de quadrilha, num episódio macabro que chocou Curitiba. Como vem sendo noticiado, ela "antecipou a morte" (parece que hoje ninguém mata mais, apenas antecipa a morte) de sete pacientes por asfixia, depois de receberem medicamentos que paralisaram seus movimentos respiratórios e após terem reduzida a ventilação por aparelhos. A médica esteve presa um mês e, como o processo corre em segredo de justiça, não se sabe por que foi libertada, assim como outros cinco cúmplices.
Enquanto isso, no Rio, como mostrou o artigo "Incompreensível e injustificável", publicado nesta página no dia 20, o líder comunitário da Rocinha William de Oliveira está preso sem sentença há um ano e cinco meses, acusado de vender armas para um traficante. A prova parecia robusta: um vídeo exibindo a transação. Acontece que se tratava de uma farsa com motivação política. Um morador da favela, em depoimento em juízo, acabou confessando que, por ordem do tráfico, ele editara o material para incriminar e desmoralizar o inimigo, cujo prestígio junto aos moradores e às autoridades incomodava o poder dos bandidos locais. A adulteração foi confirmada por dois peritos, um da própria Polícia Civil e outro da defesa, Ricardo Molina.
Na semana passada, a justificativa para mais uma negativa de liberdade provisória foi a suposta "periculosidade" do acusado, sem levar em consideração que sua ação na Rocinha há dez anos resistindo ao tráfico foi reconhecida por organizações de Direitos Humanos e pelo governador Sérgio Cabral.
Diante disso, vai convencer quem está preso há 17 meses sem culpa formada que a Justiça é igual para todos, mesmo que o acusado seja, como William, negro, pobre e favelado.
Um comentário:
Muito realista o texto. Sabemos que no Brasil, prisão é para os pobres. Muitos dizem: Esse aí logo estará solto, pois não acreditam que ninguém fique muito tempo na cadeia. Ledo engano! Ficam, e são muitos os que somam para a superlotacão! Basta serem pobres, basta serem pretos, basta serem favelados, ou todos esses juntos.
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