Ponto focal da história do mundo, inspiração para tantas metáforas, a Cidade Eterna está vacante. “Não há papa, nem governo e o ancião presidente da República, Giorgio Napolitano, já avisou que irá embora quando terminar o mandato, dentro de algumas semanas”, escreveu nesta sexta-feira Pablo Ordaz, correspondente do diário espanhol El País, num dos mais solenes e graves despachos jornalísticos dos últimos tempos.
Bento XVI falava baixo, só foi ouvido quando apresentou sua renúncia e, agora que a torrente de palavras pronunciadas a partir de 11 de fevereiro começam a fazer sentido, escancara-se dramaticamente a imensa agenda de desafios que aguarda não apenas o sucessor, mas também a Cúria Romana, a hierarquia eclesiástica e as lideranças católicas em todo o mundo. Não foi a morte a acionadora deste encadeamento de impasses; ao contrário, a longevidade deste refinado intelectual alemão foi a responsável pela montagem deste momento único na história contemporânea.
A presente tragédia política italiana não pode ser examinada como fenômeno à parte. Nem minimizada dentro da crise do euro. O inesperado renascimento do populismo berlusconista e o surpreendente estouro do palhaço Beppe Grillo com o seu Movimento 5 Estrelas, igualmente populista, antipolítico e antidemocrático, não aconteceram por acaso: fazem parte de um consistente reencontro da sociedade italiana com as ideias, práticas e maneirismos fascistas de Benito Mussolini.
Il Duce precedeu o Führer em 11 anos; suas milícias, xenofobia e socialismo corporativo foram adotados em mais países que o brutal nacional-socialismo alemão, sobretudo na Península Ibérica e na América Latina. A Concordata com a Santa Sé pavimentou seu assalto ao poder e estabeleceu um duradouro paradigma de convivência do Vaticano com movimentos de extrema-direita em todos os cantos do globo.
Com o pretexto hipócrita da separação entre Igreja e Estado, o Vaticano acabou oferecendo a Silvio Berlusconi um irresponsável manto de complacência e, quando percebeu o perigo, já era tarde. O pseudoanarquismo de Beppe Grillo é um subproduto do farsesco Berlusconi – insignificantes são as divergências; suas convergências parecem inevitáveis.
O Vaticano não está acéfalo; o solene rito da sucessão pontifícia já foi posto em marcha, mas o assustador vácuo criado pelas eleições italianas pode influir de alguma maneira na escolha do sucessor de Joseph Ratzinger. Um novo papa italiano terá de defrontar-se de imediato com uma grave crise política e econômica que, de alguma forma, alcançará a Santa Sé.
O filme Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rosselini, precursor do neorrealismo italiano, retrata a aliança entre comunistas e católicos em 1943-1944 para enfrentar a ocupação alemã e eliminar os últimos focos da resistência fascista. O conceito de “cidade aberta”, embora militar, visa à desmilitarização de uma cidade preservando-a de bombardeios.
Os dois Estados que convivem na bota italiana – o secular e o religioso –, embora em esferas distintas, precisam reencontrar-se com aquele pedaço da história. Ou buscar algo mais recente, o aggiornamento, palavra de ordem do Concílio Vaticano II lembrado com tanta emoção por Ratzinger depois de anunciar a renúncia. Significa atualização, também reencontro, repúdio à intolerância.
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