Valor Econômico - 25/02
É natural e legítimo o temor de que o Brasil fique à margem, e assista de longe a formação de um grande acordo transatlântico de comércio, anunciado pelos governos dos Estados Unidos e da União Europeia. Mas ainda há pouco conhecimento sobre a razão desse temor: o que são os acordos que, imagina-se, podem marginalizar o país.
"Muita gente está analisando essa negociação de um acordo do século XXI com paradigmas dos anos 70 do século passado, quando o acesso a mercados era o item principal", diz a professora Michelle Ratón Sanchez Badin, da Fundação Getulio Vargas, autora de dois esclarecedores estudos comparativos sobre os acordos de comércio que proliferaram nos últimos anos (disponíveis na internet, nos endereços is.gd/SsEfLM e is.gd/8ex04b).
É consenso que a principal expectativa com o acordo entre europeus e americanos não está no acesso a mercados - a queda de tarifas de importação -, ainda que ela seja capaz de gerar ganhos econômicos expressivos. O prêmio mais cobiçado é a remoção de barreiras não tarifárias, regulatórias, de padronização existentes entre os dois parceiros. Na prática, tanto EUA quanto os europeus já vêm estabelecendo seus próprios padrões, aplicando-os em seus acordos comerciais, em alguns casos harmonizando-os na organização para Cooperação e desenvolvimento econômico (OCDE), e no caso dos EUA, até influindo decisivamente nas regras da organização Mundial de Comércio (OMC).
Já na fracassada negociação da Área de Livre Comércio das Américas, na década passada, o Escritório Geral de Contabilidade (GAO, da sigla em inglês), órgão de apoio ao poderoso Congresso americano, apontava a remoção dessa barreiras e o estabelecimento de normas - para compras governamentais, serviços, investimentos e propriedade intelectual - como os resultados de maior potencial de ganho para as empresas americanas.
A recusa em aceitar os padrões americanos em temas como proteção a investimento e propriedade intelectual foi um dos pontos de atritos entre Brasil e EUA na ALCA. Falida a negociação, o governo americano conseguiu exportar seu modelo, já adotado no México, a dez países da região com quem firmou acordos de comércio. Ele inclui temas de difícil aceitação no Brasil, como o privilégio a investidores estrangeiros para contestar medidas de governo que afetem investimentos, ou regras de propriedade intelectual que restringem severamente a fabricação de medicamentos genéricos ou cópias de conteúdo em meios eletrônicos.
É essa a nova fronteira explorada nos acordos de comércio assinados pelos países ricos - e não só por eles: Badin mostra que China e Índia já começaram a incluir esses novos temas, como compras governamentais, em seus próprios acordos comerciais.
Nas negociações dessas regras nos acordos firmados com os EUA, alguns países, como o Chile, usaram ambiguidades no texto dos tratados para ter margem de manobra. Assim, regras duríssimas de propriedade intelectual foram amenizadas pela legislação chilena. Mas o resultado foi que os EUA mantêm há 17 anos o Chile entre as prioridades da lista de países candidatos a sanções por desrespeito à propriedade intelectual e direitos de autor, conhecida como Special 301 - da qual o Brasil foi retirado recentemente. Entre os pecados chilenos está a liberdade para digitalização de livros em bibliotecas públicas e a recusa em aceitar o chamado "notice and take down" que obriga provedores de internet a tirar do ar, mesmo sem ordem judicial, sites acusados de infringir direitos de autor.
"Recebi dez lobistas diferentes dos EUA quando negociávamos o acordo, doutores em química, em informática, gente ilustrada", ironiza o ex-negociador chileno do capítulo de propriedade intelectual, o ex-ministro Álvaro Diaz, ex-embaixador do Chile no Brasil, hoje na Cepal. "Aprendemos muito, essas negociações ficaram extremamente especializadas." A regulamentação chilena é fonte constante de atrito com os EUA e, hoje, nota Diaz, o governo americano tenta endurecer os termos do acordo de propriedade intelectual na negociação da Parceria Transpacífico (TPP). "A negociação está dura, ninguém quer ceder e, no Chile, será uma batalha política", prevê Diaz.
A especialização exigida para negociar esses novos acordos é lembrada também por Michelle Badin, que alerta para um aspecto significativo: os negociadores americanos e europeus tornaram-se especialistas em garantir exceções nos compromissos de liberalização, para atender aos grupos de interesse de seus países. Essas exceções são embutidas discretamente, em anexos e notas de pé de página dos acordos, às vezes nem percebidas no momento da negociação. São frequentes nos acordos de compras públicas, que deveriam impedir discriminação de exportadores dos parceiros devido a exigências de conteúdo local.
Os EUA, por exemplo, excluem de acordos de compras governamentais algumas licitações dirigidas a pequenas e médias empresas. "Eles têm estudos sofisticados de quais setores têm como fornecedores essas empresas de menor porte, e podem assim proteger esses mercados", comenta Badin. Enquanto o Chile conseguiu um acordo de compras públicas que abrange 30 Estados e o governo federal, o acordo com a Colômbia, mais recente, só inclui compras federais e de cinco estados.
Análises sobre efeitos do acordo EUA-UE sobre o Brasil terão de levar em conta que o país poderá se beneficiar de muitos dos resultados do embate negociador entre dois pesos pesados, como novas regras com mais transparência e agilidade nas alfândegas.
A difícil negociação para harmonizar regras e conceitos tão distintos quanto os europeus e americanos para alimentos, direito autoral e ambiente ressalta, porém, o quanto o Brasil está despreparado para esse novo cenário. A experiência mostra que, para firmar acordos comerciais, hoje, é preciso ter muita gente e ciência para saber exatamente o que se está concedendo e o que se está recebendo em troca.
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