A pensão financiava as drogas, os filhos não tinham comida, ela não deixava os parentes tirá-los de casa
"Meu pai morreu quando eu tinha 5 anos e meio. Estava voltando pra casa do trabalho, à noite, e foi assaltado numa rua de Niterói. Reagiu e foi morto. Ainda lembro minha mãe telefonando para os parentes, porque ele não voltava pra casa. Só encontraram o corpo um dia depois, no Instituto Médico Legal. Minha mãe nunca tinha trabalhado. Meu pai era tudo pra ela. Ficou comigo e meu irmão um ano mais velho que eu. Foi aí que tudo desandou.”
Ouço o motorista do carro que peguei no aeroporto Santos Dumont, do Rio de Janeiro. O trânsito estava ruim, começamos a conversar, e ele me contou sua história. Tem 22 anos, voz calma. Desabafou.
“Minha mãe começou a usar drogas. No início como usuária. Depois se envolveu mais, inclusive com traficantes. Eu sentia falta do meu pai, precisava de apoio. Meu irmão e eu, crianças, é que tínhamos que segurar a barra lá em casa.”
Já escrevi uma peça de teatro sobre viciados, Êxtase, e um livro sobre o uso de crack na adolescência, Vida de droga. Nunca havia pensado sobre o tema do ponto de vista do filho de uma drogada. À medida que ele falava, fui construindo um retrato assustador: a pensão de viúva era gasta com drogas e homens, os meninos muitas vezes não tinham o que comer, o clima doméstico era pura violência e a mãe desaparecia durante dias. Voltava machucada. Os parentes queriam retirar as crianças. A mãe não permitia. Gostava, principalmente, de cocaína. Vendeu móveis, não pagava as contas, viveram semanas sem energia elétrica, no escuro.
Os dois irmãos cresceram nesse clima. Na adolescência, cada um se refugiou na casa de uma tia. Com remorsos. “Eu pensava que devia estar lá, pra ajudar minha mãe. Não conseguia mais. O pior é que meus estudos e de meu irmão ficaram comprometidos.”
Demorou muito mais tempo que o usual para ele concluir o ensino fundamental. Tentou vários cursos técnicos, com o apoio financeiro de parentes. Matriculava-se, mas não comparecia sequer a uma aula. “Desistiram de me ajudar.” Finalmente, cada um dos irmãos recebeu, de uma tia mais bem de vida, um pequeno apartamento num bairro periférico de Niterói. Ainda morando com parentes, o motorista queria alugar o seu para pagar um curso profissionalizante. Não pôde. A mãe não tinha mais onde morar. “Cedi meu apartamento a ela. Mas morar junto ficou impossível.” Aparentemente, a mãe deixou as drogas. Os sentimentos continuam embaralhados. “Meu irmão mora no apartamentinho dele e não quer nem falar com ela. Eu visito, mas a gente não se entende.”
Ele me confessa que gostaria de tentar uma faculdade. Pretende trabalhar como motorista uns dois anos para juntar dinheiro. Também trabalha em eventos. Ainda busca equilíbrio para realizar seus planos. “Sinto falta do meu pai, mas não lembro exatamente as feições dele. Com tudo o que aconteceu, ainda estou tentando tomar pé na vida.”
Para quem teve uma família comum, como eu, onde no máximo os pais ficavam emburrados um com o outro, sua história mexe comigo. Simplesmente não consigo imaginar o que é ter uma mãe drogada, nas mãos de traficantes – que, segundo ele deu a entender, também se envolveu na venda de drogas. Recentemente, quando o governador Geraldo Alckmin, do PSDB paulista, instituiu a internação compulsória de viciados em crack, minha reação foi de revolta. Tive a sensação de que as liberdades individuais seriam violadas. Ao ouvir o relato do rapaz de Niterói, tive outro sentimento. Quando se fala em drogas, pensa-se só no viciado. Mas essas pessoas têm pai, mãe, marido, mulher, filhos. São suas vidas que se tornam dramáticas. Atos de violência e problemas financeiros são inevitáveis. O pior é a falta de compromisso. De qualquer laço. O usuário rouba a própria mãe. Adolescentes drogados vendem objetos de valor da casa e põem a culpa na empregada. O viciado perde a noção de humanidade. A mãe drogada perdeu o carinho pelos filhos, que deveria proteger.
Chego a meu destino. Ao me despedir, o rapaz ainda me conta que a namorada mora na mesma rua em que o pai morreu. Triste coincidência. “Quando passo por lá, penso que, se meu pai fosse vivo, nada disso teria acontecido.” Pergunto se pretende se casar logo. Ele responde que sim. “Quero ter a família que nunca tive. Ficou um vazio dentro de mim, uma falta de amor que preciso preencher.”
Ele parte e me deixa com uma sensação melancólica. A dor desse filho, nunca vou esquecer.
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