O ESTADÃO - 23/01
O tema das prisões esteve em evidência no ano de 2012: autoridades de peso, como os ministros José Eduardo Cardozo e Gilmar Mendes, editoriais do Estadão e da Folha de S.Paulo, novas pesquisas e seminários acadêmicos, juntos, passaram a impressão de que tanto o debate público quanto as instituições começaram a enfrentar, com o devido senso de urgência e prioridade, esse velho desafio. A inauguração do primeiro presídio privado do País, produto de uma parceria público-privada (PPP) entre o governo de Minas Gerais e um consórcio de empresas, pôs o assunto de volta à ordem do dia. Infelizmente, porém, a cobertura da mídia até o momento foi de uma frivolidade juvenil.
Já faz anos que objeções jurídicas e econômicas ao uso desse tipo contratual para presídios vêm sendo apresentadas. Pesquisadores ao redor do mundo, atentos às experiências em que o modelo mineiro diz inspirar-se, não expressam o mesmo entusiasmo (dois exemplos recentes são o artigo The Failed Promise of Prison Privatization, de R. Culp, e o relatório da Aclu Banking on Bondage). Argumentam que, não bastassem os perversos incentivos à violação de direitos dos presos e dos próprios funcionários que ali trabalham, os tais ganhos em eficiência não são nada certos. Acima de tudo, dizem, cria-se um círculo vicioso entre a proliferação de prisões privadas - um mercado artificial, oligopolizado, com crescente poder político - e o contínuo aprofundamento do encarceramento em massa.
Sobre essa controvérsia as reportagens nada disseram. Nenhuma pergunta sobre os riscos jurídicos, nenhuma suspeita sobre as vantagens financeiras, nenhum olhar desconfiado em relação à extravagante fonte de lucro escolhida pelos parceiros privados. Ao comprarem, passivamente, a imagem da hotelaria prisional, sonegaram ao público a possibilidade da reflexão crítica. Antes que embarquemos nesse modelo, porém, precisamos testá-lo com maior clareza do que está em jogo.
Qualquer discussão sobre gestão prisional deve começar pela pergunta sobre a própria legitimidade do encarceramento em massa. O Brasil é um caso exemplar dessa prática. Meio milhão de pessoas, a quarta maior população carcerária do mundo, amontoam-se nas prisões em condições sub-humanas. São submetidas à dieta física, psicológica e moral mais degradante que conseguimos conceber, após a qual se pretende que voltem, bem comportadas e dispostas, à convivência social. Assim se resume e se repete, há muitos anos, nossa principal estratégia para lidar com o crime. Conhecemos bem as consequências dessa estratégia, mas historicamente aplicamos o mínimo de nossa energia política em reformá-la.
Apesar das dificuldades práticas para se produzir uma radiografia exaustiva do sistema prisional brasileiro, pesquisas já revelaram que o País encarcera cada vez mais, e de maneira meticulosamente discriminatória e irracional. Várias perguntas já podem ser respondidas com razoável confirmação empírica.
Quem são os privados de liberdade? O retrato demográfico das prisões mostra que raça e classe social ainda são variáveis cruciais para explicar o grau de intensidade de cada sentença condenatória ou a decisão de aplicar a prisão provisória (para fins de investigação). De forma geral, negros e pobres recebem tratamento jurídico diferente de brancos e ricos. Percebe-se, enfim, que o pacote convencional de discriminação praticado pela sociedade brasileira se reflete fielmente no perfil demográfico das prisões.
Presos por qual fundamento legal? O retrato jurídico indica que as prisões provisórias, conforme a média nacional, representam em torno de 40% do total. Quando se observa qual crime deu margem à prisão, tanto a provisória quanto a decorrente de sentença, identifica-se peso estatístico significativo de crimes não violentos. Entre estes, os crimes relacionados a drogas se destacam. De um lado, portanto, nota-se um Judiciário que extrapola na aplicação de prisões provisórias e, de outro, pouco imaginativo e corajoso na experimentação de penas alternativas e na cobrança do Executivo pelos serviços que a política criminal exige.
Presos em que condições? O retrato físico das prisões brasileiras é estarrecedor. As condições de insalubridade, em seus diversos aspectos, a precariedade da assistência à saúde e a violência interna estão entre os maiores problemas. Para completar, na perspectiva de gênero, mulheres sofrem outras graves violações relacionadas às especificidades da condição feminina. Esses exemplos configuram o que o jargão jurídico chama de "violação estrutural de direitos", isto é, a supressão contínua e sistemática de todo um conjunto de direitos básicos de um determinado grupo social.
Qual o efeito, no fim das contas, dessa política? O retrato funcional, previsivelmente, mostra um óbvio descompasso entre os objetivos oficiais da prisão - de prevenção, dissuasão e reeducação - e os papéis reais que ela, disfarçadamente, cumpre (de repressão da pobreza, de combustível para a demagogia política e manipulação midiática, etc.). Tal política faz vista grossa às numerosas evidências empíricas sobre a ineficácia da prisão para o alcance daqueles fins.
Não precisamos recorrer à famosa frase de Dostoievski segundo a qual "o grau civilizatório de uma sociedade" se mede, antes de tudo, por suas prisões para concluir que essa é a face mais trágica do nosso subdesenvolvimento humano. Se contrastamos os fatos acima com a Constituição de 1988, como seus artigos 5.º e 6.º, não será exagerado dizer que, dentro do nosso extenso passivo constitucional, essa é uma das inconstitucionalidades mais sérias e estacionárias do Brasil contemporâneo. É provavelmente a que mais sofre, ainda por cima, da indiferença social, da miopia política e do oportunismo eleitoreiro. O monitoramento, pela mídia, dos novos modelos de gestão prisional é essencial para avanços concretos. Para tanto não se pode deslumbrar precipitadamente com a retórica da inovação gerencial ou com atos de marketing político.
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