O GLOBO - 23/01
Façamos um teste — responda rápido: qual é o nomecompleto de sua empregada doméstica?
Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos — uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.
A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.
Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.
"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até ante ontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade, faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo pelos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e o da Miriam Leitão.
E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em nevoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade pessoas.
Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar — pela roupa usada como cicatriz ou estigma — a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade mas (e ai está o ponto) não pode conduzir a igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.
Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não tem nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem postas patroas, promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste — responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?
Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade mas mantendo a intimidade que humaniza a todos não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, o problema não são somente das babás mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas" na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.
Há aqui um sintoma da silenciosa mas permanente, revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Ai temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito porque o se desconhecido se não se comportar como um inferior ele vira um inimigo.
Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário a boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.
O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação a igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que tem muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?
Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as mascaras típicas de suas figuras. Mas ai o (des)mascarar seria equivalente a revolução que tanto queremos e — eis a questão — não queremos. Senão não seriamos campeões mundiais de empregadas domésticas.
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