O ESTADÃO - 09/01
Acabei de arrumar as malas para uma conferência em Oxford sobre as desigualdades entre homens e mulheres no contexto dos países em desenvolvimento. Sobre esse assunto, a mesma camisa não veste dois emergentes. Basta comparar o Brasil e o Egito. Tendo visto de perto como vivem as mulheres naquele país - pois me casei com um egípcio em 1999 e morei no Cairo até 2002 -, poderia contar histórias para ilustrar as estatísticas do Banco Mundial (The World Bank Gender Statistics) e as do relatório The Global Gender Gap Report (publicado pelo World Economic Forum). Mas na comparação entre os dois países, a força dos números me basta.
Aqui a inserção da mulher no mercado de trabalho contribui para o crescimento econômico e a melhoria dos indicadores de bem-estar. Mas a mortalidade feminina antes dos 5 anos de idade (que é de 4,5 em mil meninas nos países ricos, na média) continua alta no Brasil: 14 em mil (e no Egito, 20 em mil).
As brasileiras desconhecem os sofrimentos da mutilação genital imposta a 91% das egípcias entre 15 e 49 anos de idade. E enquanto a lei brasileira dá às mulheres iguais direitos à guarda dos filhos durante o casamento e após o divórcio, esses direitos no Egito pertencem ao homem. Lá, 39% das mulheres acreditam que o marido tenha o direito de bater nas mulheres em determinadas circunstâncias. Não tenho ideia desse número aqui, na nossa terra, mas suspeito que, se ainda existem brasileiras favoráveis a tapas e chicotes, elas o sejam não por imposição religiosa, mas por desvio de comportamento, raro até mesmo entre as leitoras de Cinquenta Tons de Cinza.
A educação faz toda a diferença: 90% das brasileiras adultas sabem ler, mas apenas 58% das egípcias. As mulheres representam 42% da nossa força de trabalho (comparável à média de 44% nos países mais ricos) e apenas 24% no Egito. A razão entre mulheres e homens que ocupam altos cargos entre oficiais, advogados e gerentes (48% em média nos países mais ricos) é de 56% no Brasil e 12% no Egito.
Aonde quero chegar? Ao fato de que a situação da mulher no Brasil se parece mais com a que existe nos países ricos do que com a de outros emergentes. Aqui, como nos países ricos, a disparidade salarial persiste. E aqui, como lá, as mulheres se queixam da dupla jornada. Os grupos mais abastados contam com a ajuda de empregadas. Entre os pobres, entretanto, elas carregam sozinhas a responsabilidade das funções domésticas.
Mas hoje o foco de nossas preocupações é o Egito. As revoluções que derrubaram velhas ditaduras também promoveram os partidos islâmicos. A Irmandade Muçulmana e os salafistas conquistaram mais de 70% dos assentos no Parlamento. Alguns líderes bloqueiam abertamente a participação da mulher na vida pública e muitas candidatas, nos materiais de campanha, substituíram a foto do próprio rosto por imagens de flores.
O presidente Mohamed Morsi, em meio a protestos contra o governo e deserções de seu próprio Gabinete, orquestrou o voto de aprovação da nova Constituição - que adiciona à Constituição de 1971 artigos que atribuem a uma instituição religiosa a responsabilidade formal pela interpretação da Sharia (principal fonte de legislação). As questões modernizadoras referentes aos direitos das mulheres ficaram de lado.
Apesar dos desafios, há razões para acreditar que as mulheres acabarão vencendo. Quando? Ainda vai demorar, mas considere: apesar de somente uma em cada três mulheres participar da economia formal no mundo árabe, sua participação na força de trabalho está aumentando e muitas famílias agora contam com duas fontes de renda. O Egito depende das receitas do turismo - 11% do produto interno bruto (PIB) em 2011 - e peleja por um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Atrair investimentos diretos e turistas é chave para o crescimento econômico. Questionar os direitos das mulheres afugenta o apoio internacional.
Por outro lado, a nova Constituição mostra maior preocupação em estabelecer as bases para um califado islâmico do que em promover os interesses do Egito. A ascendência política de grupos radicais pode restringir ainda mais a liberdade feminina, como aconteceu no Irã com o triunfo da teocracia islâmica. Seria péssimo. Os direitos da mulher fazem parte de demandas mais amplas para a mudança social e política. Servem de termômetro para o futuro da região. Assinalam o destino do conjunto mais amplo dos direitos das minorias e das liberdades de religião e expressão. O que está em jogo é nada mais, nada menos que a possibilidade de a democracia se tornar realidade no mundo árabe.
Razão para otimismo é que os movimentos recentes têm mobilizado as mulheres como nunca se via no mundo árabe. A nova geração exige assento à mesa do poder, invadindo as ruas e as redes sociais. Milhares de blogs de organizações femininas pedem mudanças. Tais pedidos nada garantem. Entretanto - seja na política ou na mídia, na educação ou na força de trabalho -, pouco a pouco, mas a passos cada vez mais rápidos, a realidade da vida diverge das normas que os fundamentalistas gostariam de impor à sociedade.
Hoje, as forças que dividiam secularismo e islamismo ocorrem dentro do próprio Islã. Os árabes moderados insistem em que o Islã é compatível com os direitos das mulheres e aceitam o papel público delas na sociedade. Embora ideias extremistas nunca desapareçam, é possível que a posição moderada se torne dominante nesta caminhada difícil para uma sociedade mais livre.
Mesmo nos países ricos se avança vagarosamente. Só em outubro de 2012 a Inglaterra mudou o sistema de progenitura, que permitia aos irmãos mais jovens herdar o trono antes de suas irmãs mais velhas. Mas... devagar vamos longe. Conheço bem a diferença entre as ideias e atitudes da minha época de menina em Minas Gerais e as deste século 21 em Sampa.
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