FOLHA DE SP - 09/01
O horror se vê superado pelo grotesco, o que não deixa de ser uma vacina psicológica
Acho que a primeira cena realmente horrível (açougue, sangreira) que vi no cinema foi em 1982. O filme até que era bom: "A Marca da Pantera", de Paul Schrader, com Nastassja Kinski -um remake do clássico em preto e branco de Jacques Tourneur, sobre o qual falarei depois.
Um sujeito se aproxima da jaula da tal pantera, e, zás! Volta com um toco em vez do braço. Vemos o sangue, os tendões e um osso aparecendo, depois do ataque traiçoeiro do felino.
Lembro-me de ter pensado, há 30 anos, no destino que me esperava como espectador de cinema. Era, de fato, só o começo.
Por maior que tenha sido a evolução dos costumes nas últimas décadas, cenas de sexo só são tão explícitas assim no cinema pornográfico. Já a explicitude da violência está em toda parte.
Está em "O Hobbit", por exemplo. Tenho tido bastante tolerância, por razões familiares, com filmes infantojuvenis. De "Alvin e os Esquilos" a "Piratas do Caribe", assisti a muita coisa nos últimos anos, sem desgostar em princípio de quase nada.
"O Hobbit" talvez tenha marcado meu ponto de saturação. É longo demais, violento demais, chato demais, com todas aquelas referências a um suposto universo mítico de orcs, greeks, crocs, blips e não sei mais que tipo de entidades, tão artificialmente (pelo que vi no filme) produzidos pelo autor da saga, J. R. R. Tolkien.
Tudo já é feito para consumo dos fãs, e quem não está familiarizado com "O Senhor dos Anéis" e suas sequelas se vê arremessado a um mundo em que temas "arquetípicos", do tipo a busca, o herói, o dragão, o tesouro, parecem produzidos em laboratório.
Seja como for, antigamente os monstros e maldades desse tipo de filme tendiam a provocar algum medo nas crianças. As cenas mais extremas de "O Hobbit" apontam, entretanto, para outra reação.
Não se trata de imagens ameaçadoras, das que fariam parte dos piores pesadelos infantis. O medo é contrabalançado pelo que os monstros têm de repulsivo; sua feiura chega a ser cômica.
Certo gnomo, dominando hostes infernais, surge com uma papada tão flácida que ficamos em dúvida se não é uma barba feita de pele pardacenta. Um bicharoco velhaco, meio lesma, meio lêmure, com vozinha de bruxa, suscita doses iguais de horror e de desprezo.
A destruição de tais inimigos se torna menos uma questão de justiça que de higiene. Também na série dos "Piratas do Caribe", a tripulação de um navio fantasma era tão nojenta, com moreias saindo pelo nariz e cracas no pescoço, que seu potencial aterrorizante diminuía um bocado.
O horror se vê superado pelo grotesco, o que não deixa de ser uma vacina psicológica. O medo de verdade, o medo real, fica assim reservado para outro tipo de cinema, e para outra faixa etária.
Saíram em DVD alguns filmes do diretor Jacques Tourneur, entre eles "Sangue de Pantera" ("Cat People"), o clássico de 1942 que Paul Schrader iria refazer quarenta anos depois.
Nessa história, assim como em "O Homem Leopardo", do ano seguinte, o que interessa é criar no espectador um outro tipo de medo. Ninguém fica muito impressionado com as estranhas maldições que ameaçam os personagens, e pouquíssimos momentos chegam perto da hipótese de um arrepio.
Cria-se um medo, digamos, agradável, ou melhor, poético, nas cenas mais ameaçadoras de "Sangue de Pantera". Poucos diretores sabem interromper a música de fundo como Jacques Tourneur. À noite, ao longo de um muro branco, é o silêncio o que mais inquieta.
A mocinha sente que está sendo seguida. Será por alguma pessoa, por bicho, ou por algo que não é deste mundo? Outro filme, a mesma situação. Ela está agora presa num cemitério; nada se passa, nada se vê. Apenas o galho de uma árvore se verga lentamente...
Piscina. Noite. A luz se entretece na água em preto e branco. Você ouviu alguma coisa?
Mulheres vitimadas ou possuídas por algum instinto predatório e sobrenatural esgueiram-se nesses filmes. Mesmo "Quando a Neve Voltar a Cair", drama antinazista bastante convencional que faz parte do pacote de DVDs, beldades delicadas (Tamara Toumanova, Maria Palmer) são vistas de longe, numa espécie de tocaia.
Sexo e violência, como sempre. Mas na dosagem e nos filtros de uma coisa e outra está o segredo de todo o charme, humano ou felino, que Tourneur sabe transformar em cinema.
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