O GLOBO - 30/12
O novo Ang Lee visto em uma sessão 4D e o asco a Tolkien: ‘Essa mitologiazinha celta me enche o saco’
O homem e o menino são muito bons. Mas o adolescente me arrebata. Ang Lee tem também a virtude de dirigir com sensibilidade seus atores. “As aventuras de Pi” ganhou apenas duas estrelas aqui na “Tarde”, da Bahia (“O Hobbit” ganhou três, hum…). O bonequinho do GLOBO tratou o filme de Lee com o mesmo desprezo. Bem, não vou ver “O Hobbit”: “O Senhor dos Anéis” (o primeiro) foi um dos filmes de que menos gostei em toda a minha vida. Sinto essa rejeição por Tolkien desde os anos 1970, quando um desenho entusiasmava amigos meus desbundados. E o filme (cuja terceira investida ganhou o Oscar) me pareceu a fórmula perfeita para produzir desinteresse: o que havia de história para ser contada o era nos cinco minutos (pareciam dez) do prólogo — e todas as restantes duas horas e meia (ou seriam três?) eram dedicadas a mostrar erraticamente o que já sabíamos (com o tamanho do Frodo variando constrangedoramente de sequência para sequência). Não havia final. Nem sequer um final de primeiro episódio de série, algo que nos fizesse querer saber o que viria a seguir: apenas, num momento qualquer, aqueles seres teriam que atravessar uma cadeia de montanhas.
Eu estava de mau humor por razões íntimas e fiquei com raiva do tempo que perdi vendo figurinhas que me dão enjoo, como elfos e duendes. Imagino que a turma da Incredible String Band adorasse Tolkien. E eu adorava o som dessa banda. Ainda amo o cara cantando “Water”. Mas essa mitologiazinha celta me enche o saco. Já o garoto indiano perguntando à garota, para cuja dança ele toca tabla, por que a flor de lótus se esconde na floresta, com aquela cara, é poesia pura.
A conversa de Pi com os pais e os irmãos à mesa do jantar — quando é decidido que a família virá para o Canadá e, ao entusiasmo do pai com a ideia de que partirão para o Novo Mundo “como Colombo”, o menino responde “Mas ele queria chegar à Índia” — é genial. E a tentativa de encontro amigável entre Pi e o tigre, abruptamente interrompida pelo pai, é um momento sublime de cinema. Tudo o que, de Lee, sobra em “Brokeback Mountain” (a ênfase adjetiva na beleza da paisagem) aqui encontra seu lugar e dimensão adequados. Tudo o que em “O tigre e o dragão” era desamarrado, aqui se completa num roteiro claro, capaz de dar conta tanto do que há de fisicamente inimaginável de ser feito a partir do livro em que se baseou quanto de segurar a ambiguidade das histórias alternativas que são narradas pelo protagonista. Sem frustrar o espectador.
Lee ama de fato o cinema. O cinema mesmo, o que ele realmente é. Toda sua história de atração de feira e lugar de recreação, passando pela assombrosa profundidade que seu mecanismo pode atingir ao recriar ideias que são inspiradas por sensações. Tudo o que gerou a respeitabilidade intelectual que o cinema atingiu como meio de expressão. Lee fatalmente teria um papel forte na história recente do uso de tecnologias de imagens em 3D.
Vi “As aventuras de Pi” numa sessão em 4D, para minha surpresa. Eu não sabia do que se tratava. Eu estava com minha pipoca e minha Coca. Também com meu casaco grosso, com medo do ar condicionado. Tive a surpresa alegre de não precisar usá-lo: o cinema não estava gelado. Elogiei a civilidade de Salvador. Qual o quê. Julgava que 4D tivesse algo a ver com o que meu filho Zeca me dissera a respeito de um tal HF-não-sei-quê, referente ao número de fotogramas por segundo. Mas o que acontecia era que minha cadeira estremecia a cada estrondo, o vento gelado me ensurdecia nas cenas de tempestade em mar aberto, o cheiro das flores que rodeavam a imagem da garota que dançava enquanto Pi tocava invadia minhas narinas. Às vezes minha poltrona se movia em sincronia com o movimento de câmera, com efeito que poderia ser desestabilizador mas, não sei por quê, não me incomodou. Nas cenas de tormenta em alto-mar, eu sacolejava junto com Pi e o tigre. Vesti o casaco. A maior parte do tempo soprava um vento gelado. Mas, até o tigre sumir sem se despedir, não houve diminuição do meu encantamento ou da minha atenção. Quando miríades de seres marinhos desenham o lindo rosto da mãe de Pi, que morrera, seu terceiro olho criando um túnel para o tudo negro, eu chorei. Chorei também com Pi protestando contra Deus. Minha mãe (que meu irmão Rodrigo achava parecida com o ator indiano adolescente dos anos 1950 Sabu) tinha morrido fazia dois dias. Muita Índia demais, com aqueles deuses todos, me enjoa. Mas assim, com Pi vendo o hinduísmo através do Cristo (e vice-versa), e seu pai defendendo a razão que está acima dessas fantasias (e a mãe pedindo ao pai que deixasse o menino encontrar seu caminho), eu me senti muito profundamente em meu próprio ambiente.
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