REVISTA ÉPOCA
Por que falamos tanto, se temos tão pouco a dizer?
A cena aconteceu dentro de um ônibus, durante um congestionamento daqueles que são frequentes em São Paulo. O rapaz ao meu lado sacou o celular e se pôs a conversar com a namorada. Era inevitável que eu ouvisse. Ele falou longamente sobre o trabalho, comentou sem pressa que era aniversário de um amigo dele, declarou repetidas vezes que ela – “amooorrr” – era a pessoa mais importante da vida dele.
Quando eu achei que a ligação iria acabar, ele se pôs a discutir, em detalhes minuciosos, tudo que os dois iriam fazer dali a poucas horas, ou talvez minutos, quando se encontrassem. Falou que queria comer pipoca, mas disse que preferia frango frito. Falou da mãe dela, da casa dela, da família dela. Previu o que ela iria dizer para ele e o que ele responderia para ela. Disse que a coisa que mais queria, depois do frango, era casar com ela. Juro! Falou, falou, falou até que eu me levantei, depois de mais de 45 minutos daquilo, e desci do ônibus lotado. Caminhei para casa por quase uma hora, feliz com o silêncio. Quando entrei em casa, segurei a minha mulher pelos ombros e disse, convicto até a medula: “Você agradeça todos os dias por estar comigo, e não com um chato carente que não consegue calar a boca.”
Podem me chamar de chato, insensível e ranheta, mas a conversa do rapaz no ônibus deixou claro, para mim, algo que anda pululando ao nosso redor de um modo exasperante: a banalidade do bem. Do “meu bem”. Talvez por influência das companhias telefônicas e de seus planos que permitem conversas ilimitadas, as pessoas perderam a noção. Falam superficialidades umas às outras o tempo inteiro. Têm os melhores sentimentos, mas nenhum limite e nenhum conteúdo. Sobretudo os casais.
Aquilo que os ingleses patentearam mundialmente como “small talk” – a conversinha boba sobre o tempo, que se tem com o vizinho no elevador ou com o estranho no trem de metrô – foi ampliada, turbinada e agigantada. Penetrou as relações mais íntimas. Os temas de conversa entre pessoas que se relacionam (amigos, namorados, colegas), passaram do cotidiano ao trivial e daí, rapidamente, despencaram para o banal mais rasteiro. As pessoas se viciaram na partilha incessante de irrelevâncias. Passam o tempo trocando bobagens que antes não se diziam. Há uma inflação de palavras e temo que por baixo dela haja escassez de compreensão.
Em vez de ficar quieto no ônibus, pensando, o rapaz puxa o telefone e chama a namorada – ainda que não tenha nada remotamente importante a dizer. Talvez ele pudesse ler, talvez pudesse escutar música, quem sabe descobrisse algo novo sobre a cidade e seus moradores observando a rua pela janela ou a diversidade humana no interior do ônibus. Mas não. Ele prefere falar, como todo mundo parece estar preferindo. Jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres. Somos uma sociedade de faladores compulsivos que – misteriosamente, mas nem tanto – não se entendem. Estou sendo muito chato? Talvez, mas me parece que as pessoas perderam o sentido do silêncio. Ele deveria dominar a nossa vida. Devido à nossa natureza física, do cérebro unitário e impartilhável que cada um de nós carrega, estamos fadados a ficar em nossa companhia o tempo inteiro. Isso é bom, estávamos acostumados, mas, de alguma forma, parece que perdemos o jeito. Agora temos de falar o tempo todo para espantar o convívio com o silêncio interior.
Como eu já disse, acho que parte importante da culpa por isso tudo é da tecnologia. O telefone celular e a internet – as redes sociais, que a gente agora carrega no bolso – parecem ter despertado uma monstruosa fraqueza humana. Somos socializadores compulsivos. Diante da possibilidade de falar, espiar a vida do outro, se exibir ou fofocar, não resistimos. Deve estar em nosso DNA, escrito nos genes da nossa constituição mais essencial. Há um vazio dentro de nós que só assim conseguimos preencher. É o medo de estar sós, isolados, longe do calor do grupo. Nós nos sentimos assim nas grandes cidades, e por isso falamos tanto, telefonamos tanto, twitamos tanto, lemos e atualizamos o Facebook o tempo todo: é a nossa forma de esticar a mão e tentar alcançar o outro. Pela palavra, tentamos acalmar o bicho assustado dentro de nós.
Apesar disso – ou por causa disso – o silêncio faz falta. Precisamos dele para ouvir os nossos pensamentos. Precisamos dele para pesar o valor das palavras, ou das músicas, ou dos filmes, ou da internet: cada uma dessas coisas vale mais ou menos que o silêncio precioso? Vale a pena rompê-lo neste momento para dizer o pouco que eu tenho a dizer? Essa pergunta, que parece esdrúxula, é fundamental ao convívio. Antes de passar uma hora ao telefone tentando suprir nossa insaciável carência, seria preciso se perguntar: vale a pena? Sim, por que há coisas a ganhar ficando quieto.
A introspecção precede a compreensão, o entendimento das coisas. O fluxo incoerente de pensamento que nos habita ganha uma forma quando falamos, mas falar significa suprimir as outras formas de manifestação da mente. Enquanto o fluxo de pensamento está lá, em estado bruto, agitado e disforme, mas em silêncio, muita coisa se processa, de forma mais ou menos inconsciente. No silêncio encontramos respostas, soluções, inspirações, ideias. Mesmo sem perceber. Na troca incessante de palavras achamos apenas redundância.
Isso não é diferente para os casais. No interior dos relacionamentos tecemos um ninho aconchegante de palavras e hábitos. As mesmas conversas, os mesmos temas, as mesmas brincadeiras e carinhos. Isso tudo é bom, mas tem limites. Dentro de um casal ainda precisamos de espaço, tempo e silêncio. As conversas, além de indicarem aconchego emocional e cumplicidade, deveriam ter significado. Eu sei, eu pensei, eu descobri – então eu divido. Eu sinto, eu percebo, eu temo – então eu falo. Nos intervalos entre essas coisas, o silêncio. Cheio de amor, cheio de desejo, cheio de carinho. Partilhado e curtido. Silêncio oposto da palavra inútil e vazia, da palavra banal.
Ou então nós todos pegamos os celulares e falamos até explodir, que nem cigarras.
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