terça-feira, outubro 02, 2012

Palavra de magistrada - JANIO DE FREITAS

FOLHA DE SP - 02/10


Cármen Lúcia lembra-nos de que o golpismo é parte da política brasileira desde a Proclamação da República



Ao final de seu voto seguro e claro, na última sessão do Supremo na semana passada, a ministra Cármen Lúcia pediu para expor uma preocupação à margem do processo. Por motivos que não vêm ao caso, o improviso da ministra não foi incluído no noticiário ou, na exceção em que o foi, perdera a parte de mais profunda significação e fruto de uma coragem incomum, nas circunstâncias. Reproduzo o trecho:

"O sistema brasileiro, acolhido em 1988, é muito difícil. Porque um governo que não tenha maioria parlamentar tende a não se sustentar. Ele cai. E se ele não cair, pouca coisa será feita. Então, cada vez é preciso mais rigor na ética e no cumprimento das leis pelos políticos. Para que a gente cumpra esse tão difícil modelo brasileiro exatamente com o rigor que a sociedade espera de cada agente, de cada servidor público."

Neste país, afirmar a existência de "democracia plena" e do "funcionamento perfeito das instituições" é obrigação e banalidade. Se houver, porém, algo discutível naquele trecho, não é o reconhecimento de que o sistema brasileiro, produzido pela festiva Constituinte de 88 e intocado na Constituição, é mais difícil do que o Brasil pode ter.

E muito menos caberia discutir, com boa-fé, o honesto e bravo reconhecimento, por magistrada de intocada respeitabilidade e no próprio Supremo Tribunal Federal, de que "um governo que não tenha maioria parlamentar tende a não se sustentar."

A admitir-se a possibilidade de "mais rigor na ética e no cumprimento das leis pelos políticos", as palavras de Cármen Lúcia são o chamado à exigência de correções que tornem o sistema político menos difícil, para salvaguardar a iniciante democracia dos riscos em que, sem isso, acabará por sucumbir.

Mesmo que não tenha sido seu propósito, as palavras de Cármen Lúcia lembram-nos de que o golpismo é parte da vida política brasileira desde a Proclamação da República, nada além de um golpe de estado trazido na ponta da espada Militar. Um estigma de nascença.

A preocupação que motivou a ministra é a de que as repercussões dos fatos e do julgamento atual no Supremo não ajam contra a crença na política. Sobretudo nos jovens. "É a política ou o caos", disse, " é a política ou a guerra". O que se passou, e levou ao julgamento, "não significa que a política seja sempre corrupta", e é preciso que isso não seja esquecido pelos muitos "já desencantados entre os 138 milhões de eleitores".

Mas, outra vez sem presumir intenção da ministra, sua preocupação permite observar que incidiu em lugar e momento particularmente oportunos. O atual julgamento no Supremo começou como um caso de "compra de apoio a votações de interesse do governo". Apoio e votações estavam substituídos, às vezes, respectivamente por "votos" e "projetos". O mesmo vale para os meios de comunicação. Com o passar dos dias, os ministros do Supremo foram preferindo deixar de fora a finalidade do valerioduto movido pelo PT.

Não ficou demonstrada a acusação de compra sistemática de votos, levada para o Supremo pela Procuradoria-Geral da República. A intervenção extra-voto da ministra Cármen Lúcia sugere aos ministros a possibilidade de que o financiamento (ilegal) de campanhas alheias, pelo PT, tenha mesmo figurado como aquisição de maioria parlamentar. Pelo temor, ou pela percepção, de que o governo "tendesse à queda". A corrupção política foi instrumento -nesse caso como em outros hábitos vigentes na vida parlamentar.

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