O ESTADÃO - 06/08
Ele vive da música e para a música – desde janeiro de 2010, quase que literalmente. Foi quando Arthur Nestrovski assumiu o cargo de diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a celebrada Osesp. Aos 52 anos, este gaúcho multifacetado (é compositor, violonista, crítico literário e musical, escritor e editor) se viu às voltas com um desafio de imensa responsabilidade: seguir o legado de John Neschling e manter ascendente a curva desta que é a mais importante orquestra do País. E para acabar de vez com seu tempo livre, este ano Arthur foi também nomeado diretor artístico do Festival de Inverno de Campos do Jordão. Pouco depois do evento, e antes de embarcar com a Osesp para Londres, parte de uma grandiosa turnê europeia, ele concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Com o dia a dia corrido da Osesp, você tem tido tempo para compor?
Vira e mexe acaba saindo alguma coisa, hoje em dia num ritmo bem menor, claro. Tenho uma canção nova, com letra do Luiz Tatit, que vamos mostrar no show de lançamento do DVD Tatit-Wisnik-Nestrovski, dias 21,22 e 23 de setembro, no Sesc Santana. E ando matutando se não seria hora de gravar outro CD de violão solo. Quem sabe em janeiro?
E literatura? Tem conseguido escrever?
Olha, me orgulho muito dos dois Jabutis que já ganhei (o primeiro em 1987, com Debussy e Poe; o segundo, em 2003, com Bichos Que Existem e Bichos Que Não Existem). Em 2009, saiu Agora Eu Era, com ilustrações do Laerte, meu nono livro para crianças. Agora... de lá para cá, entrei para a Osesp e não sobra tempo algum para escrever.
Como foi organizar, pela primeira vez, o Festival de Inverno Campos do Jordão?
Estamos todos de língua de fora – e com o coração nas nuvens. Afinal, deu tudo certo, né? Os 136 bolsistas vieram (do Brasil, dos EUA, da Holanda, da China...), assim como os mais de 70 professores e solistas. Apresentamos 77 concertos, num nível, modéstia à parte, muito alto.
Falou-se muito bem da orquestra do Festival.
Foi um arraso. Em três programas diferentes, regidos pela Marin Alsop, pelo Giancarlo Guerrero e por Richard Armstrong, e acompanhando solistas como Nelson Freire. Criamos, também, um módulo de regência, com participação de uma orquestra de câmara da Osesp. Atendemos quase quatro mil crianças, em concertos didáticos. Revelamos talentos jovens, como o maestro brasileiro Yuri Azevedo, que levou o grande prêmio do Festival, e o pianista russo Dmitry Mayboroda. Além disso, criamos convênios com cinco conservatórios estrangeiros e fizemos música para cerca de 40 mil pessoas (sem falar nas transmissões pela rádio e TV Cultura). E a lista vai bem mais longe... Basta dizer que o Festival tem condição de se tornar referência mundial, equiparável aos maiores.
Nelson Freire estava claramente emocionado – ao se apresentar com tantos jovens talentosos. Como vê a nova geração de músicos brasileiros?
O panorama da música clássica vem mudando há um bom tempo no Brasil. Dezenas de projetos de inclusão cultural oferecem formação clássica. O resultado foi o que se viu na Orquestra do Festival, tocando num nível impressionante.
O homenageado do ano foi Eleazar de Carvalho. Qual a importância dele para a música erudita no Brasil e para a Osesp?
Por consenso, Eleazar foi o maior maestro brasileiro de todos os tempos.
Titular da Osesp por 24 anos, dirigiu o Festival de Campos do Jordão por quase duas décadas. Todos nós somos devedores do trabalho dele. Ao longo da vida e também depois , Eleazar foi se transformando na Osesp, no Festival, nalguma medida em cada um de nós. No melhor de nós: Eleazar virou música.
O que se pode esperar do Festival em 2013?
Vamos conversar sobre isso com a Secretaria de Estado da Cultura. É cedo para anunciar qualquer coisa, mas, em princípio, teremos a maior alegria de continuar à frente de um projeto desses, que tem tudo a ver com a missão da Osesp e contribui para fortalecer o que a gente já faz no âmbito do Sistema Paulista de Música.
Quais seus compositores eruditos preferidos?
Isso é impossível de dizer. Escuto de tudo e de todos. Incidentalmente, prefiro falar em “música clássica”. Só os especialistas implicam com o termo (porque nem toda música clássica é do período clássico, fins de século 18). Na prática, todo mundo sabe do que se trata: concertos, sinfonias, sonatas, óperas etc. E o termo “erudito” tem um travo preconceituoso.
E da MPB?
Não dá para nomear só dois ou três. Se eu disser Tom Jobim e Chico Buarque (porque gravei o Jobim Violão e o Chico Violão), onde ficam João Gilberto, Caymmi, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e Caetano Veloso, sem falar em Zé Miguel Wisnik, Luiz Tatit, Tom Zé, André Mehmari etc. etc.? E por que parar na música brasileira?
Na minha lista entrariam Keith Jarrett, Brad Mehldau, Bob Dylan, Gaiteros de San Jacinto, Mariza, António Zambujo e tantos outros. Não caberia tanta gente na minha cabeceira.
O que costuma ouvir em casa?
Hoje em dia o que mais escuto é música ao vivo: dois ou três concertos da Osesp na Sala São Paulo, para começo de conver-
sa, quase toda semana, além de ensaios. Também ouço música no carro, no trajeto de casa. E como disse: escuto de tudo. A cada temporada é preciso burilar cerca de 60 programas diferentes para os vários quadros da Osesp: orquestra sinfônica, orquestra de câmara, coro, quarteto de cordas, grupos de câmara, recitais. Cada programa tem de funcionar por si, mas também fazer sentido na sequência. E uma regra tácita impede a gente de programar qualquer peça tocada agora nas próximas duas temporadas. Existem questões técnicas (tamanho da orquestra, por exemplo, ou dificuldade de execução) e pessoais (tudo tem de ser combinado com regentes e solistas). É um quebra-cabeças de 1.001 peças.
E como é trabalhar com a regente Marin Alsop?
Muito intenso, muito rápido, e, para mim, muito prazeroso. Trocamos e-mails quase todos os dias quando ela não está aqui. Quando está, para além dos compromissos de concerto e das reuniões coletivas, fazemos algumas reuniões curtas e muito produtivas. Marin está sempre alerta. Tem um temperamento positivo, temperado de ironia. Nos demos bem desde o primeiro encontro, em setembro de 2010.
A Osesp participa, este mês, do BBC Proms. Qual sua expectativa quanto à turnê? Tocar nos Proms tem importância histórica não só para a Osesp, mas para a música brasileira. Forçando um pouco a mão, dá pra dizer que é como Tom Jobim e João Gilberto no Carnegie Hall, em 1962: um sinal incontrovertível de reconhecimento, que ajuda a definir a dimensão do que se faz aqui.
Gosto se discute?
Claro que sim. Mas o crucial, nesse contexto, é distinguir entre opinião e crítica. Opinião todo mundo tem, mais ou menos bem informada. Ela expressa um juízo pessoal. Já crítica é outra coisa. Crítica implica esclarecimento. A crítica deveria, antes de tudo, esclarecer o projeto do artista do ponto de vista do artista; e só então avaliar o quanto foi bem sucedido, nos seus termos, não nos do crítico. Boa parte dos autodenominados críticos não faz crítica: escreve como colunista, dá opinião, encastelada na autoridade do jornal. Alguns criam para si um personagem (“O Provocador”, “O Vanguardista”). Fazem teatro, um gênero involuntário de comédia; mas quem não for muito do ramo, acaba levando a sério...
Acredita em Deus? Acredito em tudo: em Deus, no Diabo e na Terra do Sol.
Faz ou fez terapia?
Fiz duas tentativas breves, em períodos distintos. Não deu certo, não tenho vocação. Mas agora, com esse cargo na Osesp, pensei várias vezes se não seria bom tentar de novo. Tocar uma orquestra exige saúde, energia, persistência, sangue frio, equilíbrio e é um cargo, afinal de contas, solitário.
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