Michael J. Sandel, cujos cursos em Harvard atraem multidões e está longe de ser um inimigo do livre mercado, propõe em seu livro "O que o dinheiro não compra" um debate essencial sobre os espaços que o dinheiro não deve invadir.
Relata, entre irônico e amargo, que nos Estados Unidos, onde o mercado é rei, o upgrade em uma cela carcerária sai por módicos 82 dólares por noite. Sem aflições éticas, médicos, por sua vez, praticam uma "medicina de boutique”. Trocando em miúdos, por uma taxa que varia entre 1.500 e 25.000 dólares anuais, os pacientes adquirem uma assinatura pela qual têm acesso ao celular de seu médico e garantia de atendimento prioritário. Quem não pode pagar vai para o fim da fila ou procura outro médico. O juramento de Hipócrates já era.
Quem precisa de dinheiro tem a opção de vender um rim ou servir, nos laboratórios farmacêuticos, de cobaia humana para novos medicamentos pela tarifa de 7.500 dólares. Se tudo isso se faz às claras é que a sociedade americana absorveu o princípio de que tudo está à venda e tem preço.
Sandel dá ao livro o seguinte subtítulo: "Os limites morais do mercado" Reflexão oportuna entre nós, no momento em que o Supremo Tribunal Federal começa a julgar os 38 réus acusados pelo procurador-geral da República de comprar e vender votos no Congresso Nacional. Oportuna porque o mensalão é o melhor exemplo de invasão e perversão pela lógica da compra e venda de um espaço que lhe deveria ser impermeável.
O Supremo Tribunal Federal vai julgar se a acusação procede e, em que medida, para cada um dos réus. Se, julgada procedente, ainda assim houvesse complacência na punição, uma impunidade disfarçada, o ricochete na sociedade brasileira seria devastador. Em vertiginosa espiral descendente correria um rastilho de corrupção, absorvida na cultura, transformando cada lugar de poder em um próspero balcão de negócios.
Sendo possível comprar, impunemente, o voto de alguns parlamentares por que todos — salvo por questões de consciência individual — cedo ou tarde não venderiam os seus? O voto, transformado em produto, seria cotado segundo as vantagens em jogo, sujeito a uma avaliação em dinheiro. A lucratividade da carreira política atrairia a elite dos velhacos. O Congresso ganharia a animação de uma feira livre em que as leis seriam vendidas a peso de ouro, talhadas na medida dos interesses de quem as comprou. Difícil imaginar ultraje maior à democracia.
A exemplo do Legislativo, transformado em feira, por que um juiz não venderia uma sentença? Por que um guarda de trânsito não rasgaria a multa em troca de uma propina? Ou o policial de uma UPP não receberia dinheiro e deixaria os traficantes trabalharem em paz? O que impediria, no Executivo, qualquer funcionário federal, estadual ou municipal de fraudar uma licitação, facilitar a solução de um problema ou conceder qualquer outra benesse que a inventividade brasileira não teria dificuldade de imaginar?
Se o dinheiro pudesse comprar o que não deveria jamais estar à venda ganharia tal centralidade na vida da sociedade que ninguém se conformaria de não tê-lo e o buscaria a qualquer preço. Nessa corrida do ouro, a sociedade se tornaria cada vez mais violenta e inescrupulosa. Impunidade, corrupção e violência se retroali-mentariam. Abominável mundo novo em que um socorro urgente que alivie a dor, o voto de um deputado, a sentença de um juiz, tudo se equivaleria na condição de produto oferecido a quem der mais.
A compra do voto de um parlamentar para neutralizar a oposição e eternizar um partido no poder é a quintessência do desprezo pela democracia que, por definição, viceja no campo argumentativo dos conflitos de interesses e ideias. Absolvê-la é dar o sinal verde para a generalização da lógica do tudo se compra, tudo se vende; deriva que nos levaria, imperceptivelmente, a deslizar de uma economia de mercado a uma sociedade de mercado.
Na sociedade de mercado, quem insiste em definir, como um imperativo ético, que espaços ou relações devem ser infensos ao poder do dinheiro entra no rol dos ingênuos e retrógrados que não entenderam como funciona o mundo contemporâneo. Normas éticas e gestos de solidariedade, que dão sentido e coesão à convivência entre pessoas, se transformam em peças de um museu que ninguém mais visita. Cabe ao dinheiro e somente a ele dar forma ao presente e ao futuro.
Resquícios de esperança e a vontade de dar uma chance ao futuro me levaram a falar deste risco no condicional. A sentença dirá se é tempo de passar ao presente do indicativo.
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