FOLHA DE SP - 10/07
Há 40 anos, as livrarias francesas recebiam "O Anti-Édipo", de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Provavelmente, nenhum outro livro conseguiu sintetizar tão bem as expectativas libertárias do Maio de 68, com suas demandas de reinvenção de nossas formas de vida. No entanto dificilmente encontraremos na história da filosofia contemporânea um livro, ao mesmo tempo, tão comentado e tão pouco lido.
Por sinal, esse é um dos problemas mais graves que acometem aqueles que gostam de criticar a filosofia francesa contemporânea com um simples gesto soberano de mão.
Eles simplesmente não leram os textos. Quando leem, eles o fazem como quem entra em um ringue munido de luvas de boxe. Afirmam que o estilo é impenetrável, que tudo é uma grande impostura e acham que, com isso, resolveram tudo.
Um grande professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Oswaldo Porchat, costumava aconselhar seus alunos a esperarem antes de refutar algum filósofo. "Deixem-no falar com calma, procurem seus melhores argumentos, falem, por um instante, sua língua." Aqueles que seguirem tal conselho com a leitura de Deleuze não se decepcionarão.
De fato, "O Anti-Édipo" é resultado de um longo movimento feito anteriormente por Gilles Deleuze no interior da história da filosofia. Seu objetivo era fornecer a cartografia de modelos de subjetividade (cujos nomes principais eram Hume, Spinoza, Bergson e Nietzsche) que não poderiam ser reduzidos à figura do indivíduo moderno, com suas ilusões de autonomia e unidade.
Mas longe de ser um mero passatempo historiográfico, tal esforço visava mostrar como a experiência social da vida moderna era corroída pela força do que, no interior dos sujeitos, não se deixa pensar sob a forma da pessoa.
Há algo que procura ser reconhecido para além das figuras institucionalizadas da pessoa e do indivíduo. Algo cuja impossibilidade de reconhecimento só pode produzir experiências profundas de sofrimento social.
Daí porque o livro se voltava para essas matrizes de formação da individualidade moderna, como a família com seus conflitos edipianos, o Estado com seu ordenamento jurídico e o capitalismo com suas ilusões de livre escolha e de livre afirmação de seus interesses.
Nessa passagem da filosofia à teoria social, ficava claro como a verdadeira crítica filosófica da razão só poderia ser uma clínica de nossas formas de vida. Ela é reflexão sobre como certas formas de pensar que organizam nossas vidas produzem experiências de profundo sofrimento social.
Esse projeto de articulação entre crítica filosófica e crítica social foi, certamente, um dos grandes legados do livro. Ele ainda espera continuidade.
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