Valor Econômico - 24/07
Este é um bom momento para lembrar como a introdução de um pouco mais de cuidado e realismo corrige as conclusões que se extraem automaticamente de modelos abstratos. Todos lembram a crítica feroz que sofreu o governo brasileiro quando sugeriu: 1) que existia uma espécie de "guerra cambial"; e 2) que o problema da subvalorização prolongada de algumas moedas (particularmente o yuan) deveria, sim, ser discutido na Organização Mundial de Comércio (OMC), uma vez que o FMI não tinha nenhum poder para fazer valer o seu papel de "vigilante" dos desequilíbrios fundamentais dos balanços em conta corrente. A surpreendente resposta do sistema financeiro internacional foi atacar o Brasil, por "exagerar na manipulação da sua moeda"!
A lição vem de um interessante e meticuloso trabalho do economista J.E.Gagnon, "Combating Widespread Currency Manipulation" (Peterson Institute for International Economics, Policy Brief 12-19, July 2012). O autor começa reconhecendo que, "ainda que as manipulações cambiais para aumentar o balanço comercial de um país sejam uma violação dos artigos do acordo que instituiu o Fundo Monetário Internacional (FMI), não existe, na prática como puni-lo". E continua: "O melhor fórum para produzir sanções contra as manipulações cambiais é a Organização Mundial do Comércio (OMC), em consulta com o FMI. Os países prejudicados por tais manipulações devem ser autorizados a impor tarifas alfandegárias às importações dos países manipuladores".
Uma curiosa sugestão de Gagnon é a alternativa de "taxar ou restringir a compra pelos países manipuladores de ativos financeiros dos EUA e da zona do euro", o que dificultaria e aumentaria os custos e os riscos da acumulação de reservas.
O país não mentiu, uma certa "guerra cambial" existe
O importante no trabalho é a pergunta preliminar do autor: o que é, afinal, uma manipulação cambial? Ele formula uma definição cuidadosa: "Ocorre uma manipulação cambial quando um governo compra ou vende a moeda estrangeira para colocar a taxa cambial longe do seu equilíbrio, ou impedir que ela se mova para atingir aquele equilíbrio". E como ele define a "taxa de equilíbrio"?
"É aquela que é sustentável no longo prazo, ou seja, em que o balanço em conta corrente não está gerando aumento explosivo dos ativos estrangeiros líquidos relativamente à riqueza interna e externa. A sustentabilidade geralmente implica um pequeno valor para o balanço em conta corrente. Entretanto, as economias em rápido crescimento podem manter déficits em conta corrente, na medida em que seus passivos não cresçam mais do que o seu PIB e que tal passivo seja relativamente pequeno com relação aos passivos totais do mundo".
Que características têm que ter uma economia para ser considerada uma "manipuladora de câmbio"? O autor estabelece três condições que devem ser simultaneamente satisfeitas para que isso ocorra:
1) o país deve ter reservas externas que superem seis meses do valor de suas importações de bens e serviços;
2) o país deve ter tido, na média de 2001-2011, um balanço em conta corrente, como percentagem do PIB, maior do que zero. O autor exclui a possibilidade que o país possa estar tentando apenas reduzir o seu déficit em conta corrente;
3) o país deve ter visto crescer a relação reserva/PIB nos últimos dez anos.
Os países de "baixa renda" são excluídos da análise pelo princípio que eles devem ter maior liberdade do que os outros para implementar políticas de desenvolvimento, que podem ter externalidades negativas. Examinando os restantes países-membros do FMI e da OMC, J.E.Gagnon identifica 20 que satisfazem, simultaneamente, às condições para serem classificados como "manipuladores de câmbio". Ele os divide em quatro grupos:
1) velhas economias desenvolvidas, como Japão e Suíça;
2) novos países industrializados, como Israel, Cingapura e Taiwan;
3) os países asiáticos em desenvolvimento, como China, Malásia e Tailândia;
4) países exportadores de petróleo, como Argélia, Rússia e Arábia Saudita.
Para tristeza de alguns de nossos economistas, o Brasil não é classificado como "manipulador" por lhe faltar a condição "2" acima. Não acontece o mesmo com a Argentina, com a qual temos, não sem alguma razão, exercido uma paciência chinesa.
O Brasil talvez tenha exagerado, mas não mentiu: 1) uma certa "guerra cambial" existe; 2) é preciso mesmo envolver a combinação FMI-OMC (câmbio e tarifa) para enfrentá-la e restabelecer o equilíbrio do comércio internacional; e 3) cometeu apenas pecado venial. Salvou-se do pecado capital da "manipulação" por uma análise mais profunda e cuidadosamente isenta do viés antigoverno que continua a dominar alguns de nossos analistas.
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