SÃO PAULO - Como estou até agora recebendo e-mails indignados por ter defendido, na coluna de domingo passado, que médicos deleguem mais tarefas a outros profissionais, acho que vale um comentário sobre a regulamentação do ato médico, projeto de lei que tramita no Congresso há uma década.
É verdade que, na comparação com as versões anteriores, o substitutivo da Câmara representa um grande avanço. Psicólogos, dentistas, fonoaudiólogos etc. não estão mais impedidos de fazer os diagnósticos necessários à sua profissão. Não obstante, a proposta ainda conserva tons escandalosamente corporativistas.
Apenas a ânsia por tentar estabelecer a maior reserva de mercado possível explica a existência de dispositivos que tornariam a colocação de piercings e a aplicação de tatuagens atos privativos de médicos.
Foram com tanta sede ao pote que produziram até uma piada involuntária, ao tornar o sexo uma zona restrita: segundo o art. 4º, parágrafo 4º, III, "a invasão dos orifícios naturais do corpo" é prática exclusiva da classe.
Na mesma linha vai o art. 5º, que proíbe os não médicos de chefiar serviços médicos ou lecionar disciplinas médicas. Isso numa época em que, na ciência, as fronteiras entre medicina, biologia, química, física etc. são cada vez mais difusas.
Diga-se em favor dos médicos que não foram eles que deram início a essas restrições. Eles só reproduziram e aperfeiçoaram dispositivos constantes das regulamentações profissionais das categorias que agora se queixam do corporativismo médico.
No fundo, o problema são as raízes fascistas que permeiam a sociedade brasileira. As pessoas não se veem como cidadãs de uma República, mas como representantes de uma categoria profissional que seria detentora de direitos naturais. O que se busca é sacramentar em lei suas reivindicações e usar a autoridade do Estado para implementá-las.
Nenhum comentário:
Postar um comentário