Ao satanizar as críticas de Günter Grass, um ministro de Israel plagiou e 'talibou' a intolerância dos arqui-inimigos de seu país
Um alemão estragou o Pessach deste ano em Israel. Não com um panzer, mas com um poema. Que o governo local recebeu como se fosse uma praga desviada do Egito para Jerusalém. O poema, a rigor, mais parecia um manifesto, uma diatribe contra o ânimo belicoso do governo de Binyamin Netanyahu e a reiterada intenção de seus pares, militares e civis, de bombardear preventivamente o Irã, desencadeando um conflito de proporções e consequências imprevisíveis.
Até por não ser uma joia literária, não valeu o metafórico carneiro pascal sacrificado pelo ministro do Interior de Israel, Eli Yishai. Ao acusar o romancista Günter Grass de antissemitismo, enquadrá-lo como persona non grata e proibir sua entrada no país, Yishai imolou sim o direito à crítica e a liberdade de expressão nos umbrais de Jerusalém. Ao satanizar os versos de Grass e ensarilhar armas políticas para um combate que deveria ser apenas de palavras contra palavras, o ministro plagiou e talibou a intolerância de seus arqui-inimigos.
Vítima de uma fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini por seu romance Versos Satânicos, já lá se vão 23 anos, o indiano Salman Rushdie reagiu rapidamente ao destempero israelense, com três tuitadas, que em resumo diziam o seguinte: a proibição foi infantil; Grass é autor das melhores respostas literárias ao nazismo (O Tambor, Gato e Rato, Anos de Cão); ninguém pode crer seriamente que ele seja antissemita. "É intolerável que todo e qualquer alemão que critique Israel seja tachado de antissemita", protestou Gideon Levy, em sua coluna no diário israelense Haaretz.
Pouco importa se Grass serviu numa organização paramilitar nazista quando tinha 17 anos. Suas críticas não remoem a 2ª Guerra Mundial, não contestam o Holocausto nem questionam os atos de terrorismo cometidos por Menachem Begin três décadas antes de tornar-se primeiro-ministro de Israel. Tratam de uma questão atual: o crescente e incontrolável potencial nuclear de Israel, inacessível a qualquer inspeção. Grass sugere o óbvio: o controle, permanente e igualitário, do potencial nuclear israelense e das instalações nucleares iranianas por uma instância internacional.
"Ele foi até brando", comentou Tariq Ali, há muito agastado com a "linguagem protofascista contra os árabes palestinos" dos atuais líderes de extrema direita israelenses, em particular do ministro das relações exteriores, Avigdor Lieberman.
Avi Primor, embaixador de Israel na Alemanha, pichou o poema, mas qualificou a proibição de "exagerada, histérica ou populista". Além de, acrescento eu, contraproducente (incitou a extrema direita antissemita) e inócua como punição a Grass, que, por seu confesso passado como soldado nos estertores do 3º Reich, já estava proibido de entrar em território israelense há seis anos, por uma lei que, salvo engano, data de 1952. De mais a mais, aos 84 anos, o escritor não deve ter a menor intenção de visitar Israel outra vez.
"Foi uma decisão absolutamente cínica e ridícula", declarou à revista Der Spiegel outro observador acima de qualquer suspeita, o historiador israelense Tom Segev, que se confessa envergonhado de ver seu país comparado a regimes fanáticos, como, por exemplo, o do Irã. Quando, há quatro anos, israelenses vandalizaram e picharam mesquitas, residências e lojas com desenhos da estrela de Davi, em Qebdan, As-Sawiya e outras pequenas cidades palestinas, a comparação desairosa foi bem mais longe, no espaço e no tempo. "Será a estrela de Davi a nova suástica?", perguntou Judy Maldelbaum, na revista online Salon (15 de abril de 2010), arriscando-se a ganhar a pecha de antissemita e também ter sua entrada proibida em todo o território israelense, que, aliás, não para de crescer.
Edmund Sanders, correspondente do Los Angeles Times em Jerusalém, fez um levantamento dos limites à liberdade de expressão na democracia israelense, "que outras democracias rejeitariam". Por não dispor de uma Constituição, tudo lá é decidido pelo Parlamento e a Suprema Corte. Censura prévia a noticiosos e repressão a dissidentes não são novidades naquelas paragens. Uma consulta ao site do Human Rights Watch (www.hrw.org) é um tira-teima seguro.
Grass não foi o primeiro a levar um "Verbotten" pela proa por se meter a besta e criticar o governo de Israel. Em 2008, O cientista político Norman Filkenstein foi preso, deportado e proibido por dez anos de pisar na Terra Prometida. Dois anos depois, o linguista (também americano e judeu) Noam Chomsky foi barrado quando se preparava para dar uma palestra na Universidade de Bir Zeit, em Ramallah (Cisjordânia).
Dois pesos, duas medidas. As autoridades israelenses se desdobraram em rapapés a Gianfranco Fini quando o ex-vice-ministro italiano visitou Jerusalém. Fini é filiado a um partido que descende em linha direta do fascismo. Va bene, o fascismo foi há muito tempo. O nazismo também. Mas só que o ministro de Berlusconi teve a gentileza de dizer que a queima em público de uma bandeira de Israel era muito pior do que a morte de um homem de 29 anos trucidado por uma gangue de skinheads em Verona, em maio de 2008.
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