O GLOBO - 19/03/12
Ao longo do século XX, houve um aumento, sem precedentes, na duração da vida humana, especialmente nos países de maior renda. Nossos ancestrais caçadores-coletores viviam em média 25 anos. "A vida é desagradável, brutal e curta", famosa frase de Thomas Hobbes publicada em 1651, descreve apropriadamente a existência dos habitantes de um dos países mais ricos do mundo naquele período.
Até 1870 a expectativa de vida dos ingleses era 41 anos. Os fatores decisivos para o aumento da longevidade foram: aumento da oferta de alimentos, projetos de saúde pública (tratamento da água, pasteurização, vacinação, entre outros) e tratamento médico.
A mortalidade declinou em função de melhores condições de moradia e educação, conhecimento sobre efeitos do tabagismo sobre a saúde e inovações tecnológicas nos procedimentos médicos e medicamentos. Há controvérsias sobre a importância de cada fator para o aumento da expectativa de vida, mas amplo consenso a respeito da interação entre aumento da renda, educação, melhoria das condições de moradia e trabalho com a organização de sistemas públicos de saúde.
Essa breve retrospectiva é essencial à análise de políticas de saúde formuladas recentemente por setores empresariais brasileiros. Desde o alto de suas muitas posições de poder, inclusive nas instituições públicas, donos de negócios e seus executivos decretaram o fim das diferenças entre a saúde pública e a "saúde privada".
Obviamente, erram ao tornar equivalente o que não é. Saúde pública e "saúde privada" não são substituíveis entre si.
A saúde pública é um campo de conhecimentos, saberes e práticas. Só para começo de conversa: uma faculdade de "saúde privada" não cabe na imaginação de ninguém. E para quem passa perrengue ao precisar de atendimento também não faz sentido.
Palavras ao vento não funcionam como abre-te-sésamo e nem pagam contas. Os serviços são públicos ou privados. Os públicos são insuficientes e precários e atendem todos, e os privados restringem o atendimento àqueles que pagam direta ou indiretamente (plano ou seguro de saúde). Contudo, sentenciar falaciosamente a dissolução de dicotomias portadoras de perspectivas de futuro distintas é essencial aos interessados em transformar impostos e contribuições sociais em negócio privado e privativo. A equiparação do público ao privado apaga as singularidades da saúde pública e deixa o caminho aberto para um empresariamento, justificado eticamente pelo "tanto faz".
O deslocamento da pirâmide de renda para cima inspirou o desenho de duas possibilidades de captação de segmentos de consumidores dos segmentos C e D: construir um muro definitivo entre os segmentos com ou sem plano de saúde ou erguer mais divisórias móveis. Com a segmentação radical do sistema de saúde teríamos um sistema de saúde dual financiado integralmente ou parcialmente com recursos públicos para as parcelas sem e com coberturas privadas.
Assim, as deduções fiscais seriam menos regressivas e a separação das redes assistenciais eliminaria a possibilidade de as empresas de planos e seguros de saúde ficarem com o filé mignon (casos menos graves) e deixarem o "osso" para o SUS (casos de alto custo).
Sob essa concepção, as funções estatais seriam diferenciadas para cada segmento populacional. Para os estratos de menor renda a ação governamental incluiria a administração e a prestação de serviços e para quem optasse pelo sistema privado apenas o repasse de recursos. Alternativamente, as asserções incrementais consistem na extensão do financiamento público para ampliar as coberturas privadas e utilizar a rede SUS como retaguarda. No varejo, o exemplo mais conhecido é a tentativa de abrir mais duplas portas de entrada em hospitais públicos, julgada inconstitucional, todavia, considerada por muitos empresários e autoridades públicas um primor arquitetônico. No atacado, a ideia de especialização assistencial pública e privada adquire o formato da criação de um fundo de alta complexidade (na prática alto custo), no âmbito estatal, que funcionaria como caixa para o pagamento de tratamentos crônicos e caros.
Até o momento, as diversas modalidades de parcerias público-privadas e contratos privados estabelecidos por entes públicos não alteraram a natureza universal do SUS, portanto não se estenderam aos planos e seguros.
Porém, a rejeição dessas propostas não pode ser atribuída a uma filiação inconteste do Brasil à saúde pública.
O acelerado processo de abertura de capitais de empresas setoriais, exigente de atenção máxima à autorização de fusões e aquisições e aprovação de produtos que conjuguem poupança e seguro de vida com assistência à saúde obteve apoio incondicional de políticas públicas.
Como a formação de oligopólios na saúde, via área econômica, ocorreu por fora do debate na saúde e de qualquer tentativa de planejamento governamental de médio e longo prazo, permitiu- se que os empresários estabelecessem uma circulação colateral entre o mais tacanho comércio assistencial e os bancos de investimentos. Enquanto a maior empresa de planos de saúde é sacudida por emoções fortes na bolsa de valores, um de seus hospitais continua, como dantes, reservando leitos de terapia intensa para procedimentos que pagam mais.
As migalhas nutrem a "financeirização".
Em 2009, a expectativa de vida para os brasileiros, 73,3 anos, foi menor do que a de países com economias menos exuberantes, inclusive de vários situados na América do Sul. O "tanto faz" é irresponsável, unilateral e poroso à corrupção. Não seria indiferente aos empresários a universalização do acesso aos seus estabelecimentos.
O papel protagonista da saúde pública na organização do sistema de saúde faz toda diferença ao aumentar as chances de experimentar a vida com saúde por mais tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário