FOLHA DE SP - 21/03/12
O filme é menos cômico do que parece; o que há de dramático no argumento aparece sob luz benevolente
É difícil falar do novo filme de Nanni Moretti sem estragar pelo menos uma surpresa, a que funciona como ponto de partida para o resto da história. Evite ler este artigo se você gosta de chegar "virgem" à sala de cinema.
Depois da crise inicial, a história de "Habemus Papam" não conhece grandes reviravoltas. Como nos episódios de "Caro Diário", Moretti faz mais um cinema de situações do que de acontecimentos.
E seu filme é menos cômico do que parece. Ou melhor, o que há de dramático no seu argumento aparece sob uma luz benevolente. Todo esse humor sem crueldade pode bem ser classificado de cristão.
Estamos longe dos tempos de Dante Alighieri, que pôs na antessala do seu "Inferno" o cardeal Pietro da Morrone. Eleito papa em 1294, Celestino 5º passou a compartilhar o destino dos tíbios, ou "ignavi", perseguidos eternamente pelo aguilhão de vespas e moscardos.
Trata-se dos que viveram sem dar motivos para o elogio nem para a crítica. Os neutros, os indiferentes.
"A justiça os despreza", explica Virgílio ao narrador da "Divina Comédia", e continua: "Deles não cogitemos: olha, e passa" ("non ragionam di lor, ma guarda e passa").
Também o cardeal de Nanni Moretti, depois de eleito no conclave, é alguém "che per viltade fece il gran rifiuto". Por covardia ou pequenez, foi protagonista da maior recusa: não quis ser papa.
Moretti não trata seu personagem com severidade dantesca. Poderíamos pensar que não é covardia, mas humildade, o que faz o cardeal Melville (Michel Piccoli) resistir a ocupar o trono de são Pedro.
Do ponto de vista católico, todavia, essa modéstia equivale a uma falta de fé. Se a vontade de Deus indicou seu nome, quem é ele para recusar a missão?
O problema é que o pânico de Melville não se resume a um drama pessoal. Já investido de suas funções pontifícias, ele começa um discurso apontando a necessidade de grandes transformações na igreja; felicidade e esperança surgem no rosto de seus ouvintes.
Mas ele não tem forças para isso. "Non ce la faccio!", repete o cardeal ao longo do filme, lembrando o "preferiria não fazer" do escriturário Bartleby, na novela de seu homônimo Herman Melville.
Logicamente, não fazer uma coisa equivale a fazer outra em seu lugar; e o filme de Moretti explora essa ideia de vários ângulos.
Quem, na verdade, deve ser acusado pela "grande recusa"? O cardeal que não quer ser papa, ou a igreja que continua imóvel, mesmo em questões menores, suscetíveis a revisão histórica?
Outra recusa atinge especialmente o protagonista. Dedicado à vida clerical, Melville sente que, com isso, deixou de viver a vida. Seu maior sonho, o de ser ator, foi cortado na juventude. Não por acaso, nas suas andanças incógnito pelas ruas de Roma, ele dá com uma trupe de teatro que está encenando uma peça de Tchékhov.
No palco, uma das atrizes está de preto. Celebra o luto pela vida não vivida; de certa forma, é o luto de todo clérigo quando renuncia ao mundo terreno.
O humor de Moretti intervém nas horas certas, para não pesar demais num tema desses. Sem ter o que fazer enquanto a crise se prolonga, os cardeais do conclave acabam aderindo a um torneio de vôlei, organizado pelo psicanalista que deveria cuidar do papa.
O entusiasmo aos poucos toma conta dos jogadores, para não falar das belas freirinhas da torcida. A cena tem muito de cômica, mas é comovente também. Sugere a possibilidade de que igreja e mundo secular se aproximem, e que a fé não é questão só de respeito ao dogma mas de entusiasmo e alegria.
Alegria católica, sem dúvida. Penso num conto de Graham Greene, em que uma turma de adolescentes baderneiros, entre as ruínas de Londres no pós-guerra, resolve aprontar uma vingança terrível contra um velhote, que, no fundo, não tinha feito nada de errado.
Destroem completamente a casa em que ele morava. O feito exige grande planejamento e dissimulação. O toque de gênio é fazer com que a última parede da casa venha abaixo de um modo totalmente imprevisto, quando um motorista dá marcha a ré em seu furgão.
Tamanha é a disparidade entre causa e consequência que o motorista cai na risada. Nesse riso se esconde, creio, uma forma de perdão.
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