terça-feira, março 13, 2012

Grande demais - VLADIMIR SAFATLE


FOLHA DE SP - 13/03/12

"Os artistas são como os filósofos, têm frequentemente uma saúde frágil, não por causa de suas doenças ou de suas neuroses, mas porque viram na vida algo grande demais para qualquer um, grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte." Tal afirmação de Gilles Deleuze e Félix Guattari tem o mérito de fornecer um diagnóstico de época.
Se a ideia estiver correta, então a arte e a filosofia sempre perderão força em épocas que têm medo da doença e da neurose, épocas que veem nelas apenas momentos vazios que devem ser aniquilados o mais rápido possível.
Mas, muitas vezes, a doença é, no fundo, a preservação de um futuro em suspenso. Seu trabalho consiste em lembrar-nos que nossa saúde ficou pequena demais, que a vida que se repete na saúde não consegue produzir formas para o que parece "grande demais". Por isso, a saúde que encontramos depois da doença nunca é o retorno ao estado anterior. Compreender que nunca voltaremos ao estado anterior é condição para romper com a fixação em algo que acaba apenas por nos aprisionar no que não tem mais força para perpetuar-se.
Alguns poderiam ver nesse "topos" uma recuperação da velha crença romântica tardia na "formação pelo sofrimento". Outros veriam, ao contrário, uma maneira peculiar de acreditar que a vida sempre consegue encontrar respostas para os problemas que ela mesma coloca, desde que estejamos dispostos a ouvir as perguntas.
Como bem nos mostrou um psicanalista como Jacques Lacan, as neuroses são questões, assim como a doença é um tensionamento da vida -o que talvez nos explique porque não há organismo absolutamente saudável, nem sujeito desprovido de sintoma.
Essa é uma estratégia dos que acreditam que a verdadeira perspectiva moral consiste em estar à altura do que nos ocorre. Os que sentiram com muita proximidade a neurose podem usar suas forças para esquecê-la, um pouco como gostaríamos que nosso organismo esquecesse as doenças pelas quais passou. Outros encontrarão nela suas melhores questões, de maneira distorcida e mal colocada.
Que um dos maiores artistas plásticos vivos, Anselm Kiefer, tenha construído um impressionante conjunto de obras a partir de materiais em ruínas, lembranças gastas, imagens de grandiosidade envelhecidas pelo tempo, eis algo que parece validar a afirmação de Deleuze e Guattari. Sua obra lembra como há algo que passou arruinando as formas que tínhamos, algo que deixou nossas figuras "pequenas demais", imprimindo nelas a marca discreta da morte. Tais artistas nos mostram que nossa época não desconhece o verdadeiro movimento.

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