sexta-feira, fevereiro 10, 2012

Sobre o mito da baixa poupança - SAMUEL PESSOA

VALOR ECONÔMICO - 10/02/12


Se um empresário endividar-se junto a uma instituição financeira para construir uma nova planta produtiva, o investimento ocorrerá. O poder de compra liberado pela instituição bancária gerou o recurso monetário que financiou o investimento. O investimento gerou a sua própria poupança. Esse princípio, chamado de princípio da demanda efetiva, foi estabelecido por Keynes em 1936 e pertence ao conhecimento padrão da economia.

Todos os complexos modelos "dinâmicos e estocásticos de equilíbrio geral" que os bancos centrais utilizam para auxiliar na formulação da política monetária empregam o princípio da demanda efetiva. Assim, estou ciente que a causalidade é da poupança para o investimento.

A questão é sabermos como que a decisão do empresário em tomar recursos financeiros para investir será solucionada macroeconomicamente. Há três possíveis formas. Primeiro, se houver desocupação de fatores de produção, a decisão do empresário mobilizará parcela desses recursos ociosos e o aumento da produção possível com a mobilização desses recursos gera a poupança que financia o investimento. Segundo, se não houver ociosidade e houver condições de aumentar a oferta de bens importados, o excesso de demanda produzido pela decisão empresarial de investir gerará excesso de demanda por bens e serviços que será coberto por elevação das importações. Finalmente, se não houver ociosidade nem possibilidade de elevar a absorção de poupança externa, o espírito animal do empresário terá produzido a elevação do investimento e da inflação que corta o consumo e produz poupança forçada.

Não parece haver na economia brasileira ociosidade generalizada de fatores produtivos. Desta forma, se quisermos acelerar a taxa de crescimento da economia para 4,5% ou 5%, teremos que criar condições para que o aumento do investimento seja acompanhado de aumento da poupança.

A experiência recente mostrou que não tem ocorrido desta forma. De 2004 até 2008, a taxa de investimento subiu quase 5 pontos percentuais do PIB. A taxa de crescimento do produto também se acelerou bastante. No entanto, a poupança não veio atrás.

Todo o aumento do investimento foi financiado pela expansão da absorção de poupança externa. Saímos de um superávit externo de 2,5 para um déficit de 2,5 pontos percentuais do PIB. Ou seja, o espírito animal do empresário funcionou, o investimento elevou-se, o crescimento econômico veio, mas a poupança não acompanhou. Este período não foi o primeiro. No governo Geisel, o investimento deu um grande salto, mas a poupança também não acompanhou. Fomos obrigados a recorrer à poupança externa. No período JK, o aumento do investimento gerou fortíssima aceleração da inflação.

Há espaço para esperarmos aumento da taxa de poupança doméstica? Para respondermos olhamos cada um dos componentes da poupança: a das famílias, das empresas e do setor público. Tanto no Brasil quanto nos EUA, a poupança das famílias é da ordem de 5% do PIB. Nos países europeus continentais está acima de 10% do PIB e nos asiático pode chegar ao valor extremo, na China, de mais de 20%!

A poupança das famílias depende da rede de seguro social que mitiga riscos que os cidadãos se deparam no dia a dia de uma economia de mercado: desemprego, saúde, perda da capacidade laboral com a idade, etc. O Brasil é o país da sua faixa de renda que mais gasta com seguro social. Somente com aposentadoria por tempo de serviço, por idade, por invalidez, rural e pensão por morte gastamos 12% do PIB, o triplo do gasto de economias com o mesmo perfil etário que o nosso. A baixa poupança das famílias é a contrapartida do bem-estar produzido pela abrangente rede de proteção social.

Enquanto continuar o processo de construção e aprofundamento da rede de proteção social, não devemos esperar elevação na poupança das famílias.

Com relação à poupança das empresas, ela, no Brasil, representa 15% do PIB. Mais baixa, mas não muito distante dos 22% da poupança das empresas na China. A poupança das empresas é formada por lucros retidos.

Sua elevação requer que mudemos as instituições trabalhistas e de regulação dos mercados de forma a elevar o poder de barganha do capital na divisão do faturamento das empresas entre lucros e salários e, ou, permitir a elevação da margem de lucro na venda ao consumidor. Não parece que a sociedade aceitaria medidas nesta direção. Assim, não há espaço para elevar a poupança das empresas, que, como vimos, é relativamente elevada.

Finalmente, a elevação da poupança do setor público requer redução do gasto público em custeio e transferências ou elevação da carga tributária. Esta última já se encontra em nível muito elevada. A queda do custeio depende de contração dos salários dos funcionários e redução do custeio administrativo, que, ao contrário do que se acredita, tem sido reduzido nos últimos anos.

queda das transferências públicas depende da redução dos gastos com a rede de seguridade social ou com os juros pagos. A redução dos juros deve abrir algum espaço para elevação da poupança pública. No entanto, este espaço é muito menor do que os 5% do PIB que o Tesouro anualmente gasta com o pagamento de juros. Pouco mais de metade deste montante refere-se à correção monetária da dívida pública, aos impostos que o governo arrecada com os juros que paga e a dividendos que os banco públicos pagam ao Tesouro em função do lucro que auferem do carregamento de parcela da dívida pública. Assim, apesar de muito positiva, a redução da taxa Selic a níveis civilizados não gerará muito mais do que 1 ponto do PIB de elevação da poupança pública.

Ou seja, teremos que encontrar formas de crescer sem grandes elevações da poupança doméstica. A agenda de crescimento passa por melhoria da qualidade da educação, da elevação da produtividade e da criação de uma institucionalidade que permita que o país absorva, de forma sustentável, níveis maiores de poupança externa, como, por exemplo, faz a Austrália. Não digo que este é o melhor modelo de desenvolvimento para o país. Digo que a sociedade, por meio de suas escolhas, decidiu que este é o melhor para o país.

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