O ESTADÃO - 05/02/12
É claro que você não se lembra, mas já falei (terá sido aqui?Também não me lembro) do Jean-Luc Hennig, o intelectual francês que teve a pachorra de sentar-se para escrever exatamente a respeito daquela parte de sua anatomia que acabara de deposita sobre a cadeira.
Como não tenho a pretensão de achar que minha prosa é inesquecível, aqui vai um repeteco da referência que a ele fiz, meio en passant: embora seja professor de outra cadeira, a de linguística, disciplina que lecionou na Universidade do Cairo, o Jean-Luc notabilizou-se mais por suas pesquisas de vanguarda, ou melhor, de retaguarda, tanto que sua obra mais notória, publicada em Paris em 1995 e ainda inexplicavelmente inédita num país como o nosso, tão suscetível de se interessar pelo assunto, segue sendo a Brev história das nádegas.
Mesmo sem saber quanto de sua sapiência se deve à teoria, haurida no ambiente monacal das bibliotecas, e quanto à prática, consolidada em talvez deleitosos trabalhos de campo, o Jean-Luc pode ser apresentado como o mais saliente bundólogo de que se tem notícia. Sapiência essa que se assenta numa constatação óbvia porém genial, a que ele chegou sabe Deus em que circunstâncias: a bunda nem sempre existiu – foi preciso, conta o Jean-Luc, que um nosso ancestral, três ou quatro milhões de anos atrás, se pusesse de pé sobre as patas traseiras e nessa posição perseverasse, para que a parte posterior de seu lombo fosse aos poucos ganhando redondidades que vêm a ser a característica e, por que não dizê-lo?, o atrativo mor do derrière humano. Tanto quanto os miolos, é esse par de hemisférios que nos distingue na massa das 193 espécies de primatas que macaqueiam sobre a Terra.
A iniciativa do revolucionário stand up, informa o Jean-Luc, nós a devemos ao Australopithecus afarensis, hominídeo que então abundava na Etiópia e na Tanzânia. Quem sabe à própria Lucy, celebridade póstumacujo esqueleto arqueólogos exumariam 3,2 milhões de anos mais tarde, em 1974. O exame dos ossos dessa senhorita, que ao bater as botas (duas ou quatro, conforme se verá ainda nesta frase) andava pelos 20 anos de idade, permitiu saber que ela se comportava indiferentemente como quadrúpede, para subir na árvore, e como bípede, quando, serelepe, saía por aí em terra firme.
Por que a Lucy se pôs de pé, nosso bundólogo não sabe dizer; a julgar, porém, pelo resultado final, não há dúvida de que foi uma grande ideia.Como devido respeito ao imortal arquiteto e aos Poderes da República, o invento bem que mereceria a homenagem de um Niemeyer que plantasse na paisagem, no Planalto ou alhures,não Câmara e Senado, mas dois Senados justa postos. Não é absurdo concluir, literalmente por outro lado,que foi então que nasceu o hoje estigmatizado recurso pedagógico da palmada. Surgiu também, na topografia do corpo humano,uma alternativa para a seringa da medicina.Para não mencionar, claro, as labaredas que o duplo promontório recheado de glúteos veio atear na imaginação do Homo erectus.
Mas convém ir moderando aí as suas fantasias, pois a Lucy, na descrição do Jean-Luc,era um breve contra a luxúria. Não media mais de 1,05 metro, nem seu peso ia além dos 30 quilos. Comtais dimensões,ela seria hoje comparável, na melhor das hipóteses, a um teratológico bonsai. Dificilmente provocaria em nós mais que repulsa, com“seus braços enormes e suas pernas curtas, o rosto praticamente achatado, o crânio reduzido e os olhos esbugalhados”.No dizer rebuscado de um amigo meu, faleciam-lhe nádegas, como hoje as conhecemos.
Menos estimulantes ainda, para nosso paladar erótico, eram seus hábitos, como o de esgravatar a terra para desentocar cupins, seu prato predileto.E nem seu incipiente bumbum devia ser dos mais onvidativos: até que o tosco traseiro do hominídeo viesse a ser o popô que vemos saracotear na Marquês de Sapucaí, a natureza demandaria um bom milhão de anos – melhor esperar sentado, terá rosnado algum daqueles Australopithecus afarensis, talvez o marido da Lucy. É certo, em todo caso, que entre a desbundada macacada havia quem apreciasse semelhante visual – do contrário, aqui não estaríamos, o Jean-Luc e eu, no atual estágio da evolução de espécie, para lhe contar a história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário