O ESTADÃO - 11/12/11
Havelange só não conseguiu ser presidente póstumo da Fifa e organizar a Copa dos Embriões
Como aqueles parlamentares que renunciam ao cargo para escapar da cassação, o megacartola Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange entregou seu posto no Comitê Olímpico Internacional para dele não ser expulso, também por malfeitorias. Melancólico desfecho para um longo mandarinato esportivo. Havelange integrava o COI havia 48 anos. Se continuará presidente de honra da Fifa, só o tempo e o atual presidente daquela entidade, Joseph Blatter, dirão.
Oficialmente, Havelange demitiu-se por motivos de saúde. É possível que o peso da idade (95 anos) esteja afinal dobrando o acerado empresário da bola, mas a promessa de que o conselho de ética do COI arquivaria o caso de uma antiga maracutaia na Fifa se ele entregasse o crachá sugere outra coisa.
Após anos e anos de suspeitas e investigações, em 2008 um tribunal suíço apontou Havelange como beneficiário de um pagamento ilícito da ISL, a empresa falida que cuidava dos contratos de publicidade e transmissões de TV da Fifa, no valor de US$ 1 milhão. Fazia então dez anos que ele deixara a presidência da Fifa, seu feudo durante um quarto de século. Cadê as provas e a sentença?, cobrou a BBC, a primeira a noticiar o veredicto. E cobrando ficou até cansar. Interesses mais altos que os da Justiça impediram a divulgação do papelório forense.
Àquela altura completara também uma década da publicação de Como Eles Roubaram o Jogo, devassa dos subterrâneos da Fifa feita pelo britânico David A. Yallop, aqui editada pela Record. Eram 365 páginas de escândalos envolvendo as elites do futebol, grandes corporações, canais de televisão, paraísos fiscais e empresas especializadas em marketing e tráfico de influências - o trivial da corrupção AAA. O livro há muito se esgotou, o que é uma pena, pois continua sendo o mais suculento balanço da mafiosa atuação dos próceres esportivos acobertados pela Fifa. Mas, por módicos US$ 4,76, é possível baixar sua versão Kindle (How They Stole the Game) pela internet.
Sete meses atrás, outra investida da BBC, dessa vez no programa Panorama. A Fifa estava impedindo a divulgação de um documento que revelava quais de seus dirigentes haviam sido forçados a devolver o equivalente a US$ 6,1 milhões de propinas, como parte de outro acordo para encerrar uma investigação criminal na Suíça. Um juiz do cantão de Zug determinou a divulgação, mas Blatter evitou-a para não atrapalhar sua reeleição como presidente da Fifa, poucas semanas depois. Procurados pelo programa, dois dirigentes na berlinda, Havelange e seu ex-genro Ricardo Teixeira, do Comitê Executivo da Fifa e presidente da CBF, nem se deram o trabalho de dizer "no comments".
Há sempre uma eleição atrapalhando a transparência nos negócios do futebol. Havelange safou-se de prestar contas pelos US$ 6,6 milhões desaparecidos sem deixar vestígio dos cofres da CBD (a antiga encarnação da CBF, presidida por ele de 1958 a 1974) para que sua campanha eleitoral à presidência da Fifa pudesse correr sem atropelos.
Geisel, o general que então governava o País, fez vista grossa para um relatório confidencial e secreto sobre os desvios e os prejuízos financeiros (mais de US$ 10 milhões) causados pela Minicopa de 1972 aos cofres da CBD e autorizou a Caixa Econômica Federal a tapar o buraco, mas escolheu para suceder a Havelange o almirante Heleno Nunes, irmão do almirante Adalberto Nunes, inimigo de Havelange. Este, espertamente, ajustou-se à planificação esportiva do almirante, construindo 13 estádios em cidades grandes e pequenas para arrumar votos para a Arena, o partido do governo, entre 1969 e 1975.
Pelas contas de Yallop, que apelidou Havelange de "Rei-Sol do futebol", sua campanha eleitoral à presidência da Fifa deve ter custado entre US$ 2 milhões e US$ 3 milhões, já incluída a viagem de dez semanas por 86 países à cata de apoios. Quem a financiou? "Meu próprio bolso", respondeu Havelange, supostamente um homem de negócios muito bem-sucedido à frente da Viação Cometa e da fábrica de produtos químicos e explosivos Orwec, da qual era sócio.
Yallop descobriu que, na Cometa, ele apenas ocupava um cargo honorífico, pelo qual recebia US$ 6 mil mensais, o mesmo salário de sua secretária na Fifa - ou 10% do que alegadamente custara o voto da Etiópia -, e na Orwec passara a perna no sócio. Mestre em cabalar votos e aliciar delegados do Comitê da Fifa (lautas refeições, com todas as despesas pagas e mimos que começavam com relógios Rolex) e jornalistas (barras de chocolate suíço, aparelhos de barbear, filofaxes, bonés, distintivos, jaquetas, bolas, chaveiros, canetas), reinou absoluto durante 8.760 dias, dos quais 7.200 consumidos por viagens. Visitou 191 países pelos menos três vezes.
Apenas na base da simpatia não teria ido longe. Frio, enigmático, sorumbático, em nada o ajudou aquele imperturbável olhar de basilisco. Se atraiu muitos aduladores, maior foi o número de inimigos que acumulou ao longo da carreira, no Brasil e no exterior. Sua maior nêmesis nestas paragens, o jornalista Juca Kfouri, teve a credencial para a Copa de 98 contestada por causa de suas críticas ao Rei-Sol.
Aliás, quando das conversas para sediar aquele Mundial, o presidente francês Jacques Chirac nem pigarreou antes de acusar Havelange de "suborno". Brian Granville, o decano dos colunistas de futebol britânicos, insiste em que Havelange só não conseguiu concretizar duas ambições na vida: tornar-se o primeiro presidente póstumo da Fifa e organizar a Copa do Mundo dos embriões.
Em princípio, o resultado das investigações sobre as propinas pagas pela ISL (cerca de US$ 100 milhões, no total) seria divulgado no próximo sábado, na reunião do Comitê Executivo da Fifa, em Tóquio. Na última terça-feira, Blatter, que desde a reeleição assumira uma postura de faxineiro ético, "arrecuou os arfes", adiando sine die a tão esperada revelação, segundo ele embargada judicialmente por alguém com culpa no cartório. Superado esse entrave, saberemos de tudo, prometeu o sucessor de Havelange na Fifa. Depois do poente, o eclipse?
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