O GLOBO - 11/12/11
A Alemanha invadiu a França, a França ocupou a Alemanha, a Alemanha ocupou a França, e o ódio entre os dois países foi cultivado em duas guerras mundiais. Isso para ficar só na primeira metade do século XX. Dias atrás, o presidente Nicolas Sarkozy disse que fala diariamente com a chanceler Angela Merkel, ainda que não concorde sempre com ela.
A História está repleta de cicatrizes do velho ódio. Nas guerras mundiais, entraram outros países, mas a animosidade franco-germânica sempre esteve no coração dos conflitos. Nas últimas décadas eles se impuseram o desafio da convivência cotidiana e inescapável para assim tornar a paz irreversível. É o mais interessante projeto político da atualidade. Na sexta-feira de madrugada, depois de 10 horas de reuniões tensas, em Bruxelas, para salvar o euro, Merkel saiu cansada, deixando ao colega Sarkozy o trabalho de porta-voz do descontentamento com o Reino Unido, que propôs o “inaceitável”, na palavra do francês.
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, disse que o euro é um projeto em que “alguns estão dentro e outros estão fora” e que o Reino Unido “está fora disso e continuará fora”. Com base nisso, defendeu como aceitável sua ideia de isentar a Inglaterra das regras de regulação bancária mais rigorosas.
O euro não é apenas uma moeda, é o símbolo do passo mais ousado de um sonho que foi costurando a paz entre inimigos históricos. Nos anos 1950, os países começaram a marcha que os levou da Comunidade de Carvão e do Aço à União Europeia, do núcleo de seis países aos atuais 27. Desses, 17 usam a mesma moeda.
De todos os países que abandonaram suas moedas nacionais, o passo mais difícil foi dado pela Alemanha. O marco nasceu das cinzas da devastação provocada pela hiperinflação. Era o símbolo da capacidade de recuperação da Alemanha e o próprio país viu o abandono de sua moeda como a prova de que estava disposto a qualquer sacrifício pelo futuro comum. A solidez do compromisso fiscal dos alemães foi testada na unificação das duas metades do país, quando o custo de igualar padrões de desenvolvimento arrombou os cofres públicos. A Alemanha fez dolorosos ajustes. Hoje, está fora dos limites do acordo de Maastricht, mas todos estão. Só que a Alemanha tem um dos menores déficits da Europa e nos últimos dias desenhou com a França o acordo que impõe a todos os limites negociados anteriormente, sob pena de punições.
O Reino Unido não faz parte da Zona do Euro, mas está capturado pela mesma incerteza fiscal e bancária. Também tem alta dívida pública e déficit público; também tem bancos com exposição a dívidas europeias; também pode ser vítima de uma onda de desconfiança. O país está “fora” da moeda, mas não do destino europeu. Não quer mudança em regulações bancárias, mas elas são inevitáveis após o ciclo de excesso de desregulamentação.
Nos últimos meses, inúmeros economistas escreveram que o melhor é abandonar o receituário de ajuste fiscal porque ele pode agravar o problema. O Brasil que conhece bem crises econômicas sabe o quanto isso é um fato: ajustes podem produzir recessão, e ela reduz a arrecadação, aumentando o déficit. Esse era o debate no Brasil no começo dos anos 1980, na época das primeiras cartas do então ministro Delfim Netto com o FMI. Os anos seguintes mostraram que o receituário estava errado para atacar o problema da inflação, mas havia sim um enorme trabalho a fazer para sanear as contas deixadas em desordem pelo governo militar.
Aumentar as emissões monetárias e ampliar gastos como fizeram os países ricos em 2008 é a melhor forma de contratar uma recidiva da crise como a que o mundo está vivendo agora. Ao mesmo tempo, é preciso ter mecanismos financeiros poderosos de resgate. Foi nesse acordo que chegaram França e Alemanha. A França mais favorável ao fortalecimento imediato dos mecanismos de resgate e a Alemanha defensora de um ajuste fiscal comum que unifique padrões de contas públicas. Nos últimos dias, os dois decidiram, depois de muita discórdia, atacar nas duas frentes. Foi quando o Reino Unido se opôs mais uma vez. Segundo o primeiro-ministro, David Cameron, os “de dentro” do euro “devem fazer mudanças radicais e desistir da soberania para que o projeto funcione”, e explicou que o fato de haver os de dentro e os de fora do euro cria inevitáveis tensões dentro da UE.
Ninguém está completamente fora do desafio da estabilidade fiscal e financeira do mundo atual. Os Estados Unidos podem continuar expandindo seu endividamento enquanto se financiarem a 2% ao ano, mas até para uma dívida barata tudo está ficando complexo demais, como mostrou o impasse do teto da dívida no congresso americano.
Se a moeda comum acabar, terá que ser após todos saberem que França e Alemanha fizeram tudo o que poderia ser feito. O projeto político de união da Europa é a melhor aposta para um mundo que já viu até que ponto podem chegar as rivalidades nacionais do continente. Neste aspecto, o tema vai muito além da Europa.
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