segunda-feira, novembro 07, 2011

WALCIR CARRASCO - Uma noite na Cracolândia



Uma noite na Cracolândia
WALCIR CARRASCO
REVISTA ÉPOCA


São 11 horas da noite de uma sexta-feira. Estou em frente à Estação Júlio Prestes, no centro de São Paulo. O desembargador Antônio Carlos Malheiros chega acompanhado de sua mulher, Cristina. Junta-se a nós o pastor evangélico Daniel Checchio, acompanhado de dois jovens missionários. Vamos percorrer a Cracolândia sozinhos, sem escolta policial. São poucas ruas no bairro dos Campos Elíseos, onde os cachimbeiros, noias, zumbis, como se chamam os viciados em crack, instalaram-se. Quem manda é o crime organizado, cuja lei não escrita determina que lá só se pode comercializar crack, mesclado (com maconha) ou óxi (uma droga próxima ao crack, em cuja composição entra querosene – mais barata e mais letal). Os preços: R$ 5 a pedra de crack, R$ 3 a de óxi. Sem escolta, vamos sentir a realidade da Cracolândia na pele.

Andamos poucas quadras. Paro espantado na esquina da Rua Helvétia. Vejo uma montanha de lixo. Cerca de 700 pessoas esquálidas, sujas, em farrapos, estão encostadas às paredes, nas sarjetas ou andando na rua. Dois grupos tocam pagode. O cheiro de urina e de metal queimado – vindo dos cachimbos aquecidos pelo crack – invade minhas narinas, gruda-se em minha pele. Um carro vermelho para. O motorista faz um sinal. Um homem entrega um pacotinho com algumas pedras. O motorista paga e parte.

Alguém bate em meu ombro, me cutuca as costas. Não me viro. Há casarões invadidos. As janelas e portas foram fechadas por tijolos. Mas nas paredes foram cavadas imensas aberturas. Em um casarão, fico sabendo, moram de 200 a 300 pessoas.

Descubro que estou numa feira miserável. No chão, acumulam-se sapatos velhos, latas de sardinha abertas, pilhas, eletrônicos, pães de queijo murchos, tomates quase podres. Ironicamente, entre a miscelânea, uma revista de alta gastronomia.

Ergo os olhos e vejo a pichação:

WELCOME TO CRACKO CITY

Sinto um arrepio. Neste mundo com leis próprias, um olhar mal interpretado pode resultar em golpes de estilete. Mas é impossível não observar. No meio de um grupo de adolescentes acampado entre cobertores rasgados, vejo uma menina de uns 15 anos, o olhar perdido.

– Deveria estar na escola, constato.

Um casal de negros vende roupas expostas no chão, surpreendentemente limpas. Senta-se num sofá na calçada.

– É onde moram, diz Daniel. Aqui a casa das pessoas é o espaço que conseguem na rua.

Na outra calçada, uma jovem de costas me chama a atenção. Mechas loiras. Veste um bustiê preto e jeans. Olho para seus pés. Botas de camurça. Novas. Provavelmente, de shopping. Ela se volta em minha direção. A pele de seu rosto é dourada, adorna as orelhas com argolas de prata. É linda e muito jovem. Certamente, há pouco tempo ainda morava com a família, tinha a cama arrumada, almoço e jantar, passava temporadas na praia. Agora está ali: os cabelos já sujos, a aparência decaí­da. Encaminha-se para um grupo de homens cadavéricos, imundos. Eles acenam. Ela fará tudo por algumas pedras.

Um homem com uma facada na testa surge na esquina. Pede socorro. Sangra. Um dos missionários o leva a um posto médico a algumas quadras.

Aproxima-se de nós um rapaz de uns 30 anos. Conta que chegou a ficar um tempo livre das drogas. Recaiu, não pela primeira vez, há 28 dias.

– Não vou sair dessa – afirma.

Vem de uma família de classe média. Fala corretamente, é bem articulado. Foi corretor de seguros. Há seis anos está nas ruas. Vive de pedir dinheiro na rua. Vende coisas que cata no lixo.

– Sou soropositivo há nove anos.

– Se você quiser ficar limpo, a gente pode ajudar, diz Malheiros.

– Já tentei, não dá. Eu tenho todos os documentos. Mas perdi a identidade.

Nossa noite na Cracolândia só reafirma a decisão do desembargador Malheiros. Vai implantar tribunais de rua. Usar a autoridade do Judiciário para conseguir reconduzir crianças para suas famílias ou encaminhar para abrigos. Doentes para vagas no sistema de saúde público. Quer entender esse mundo antes de iniciar o projeto. O pastor Daniel aplaude:

– Toda noite morrem pelo menos três pessoas aqui. Mas não adianta algum político mandar a polícia expulsar as pessoas, simplesmente. É preciso um trabalho social.

Volto para casa. Ficamos quase três horas na Cracolândia. Sinto meu corpo pesado. Passo o resto da noite olhando as estrelas do meu terraço. Tenho vontade de chorar. É doloroso conviver com a miséria humana.

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