O detestável público
EUGÊNIO BUCCI
REVISTA ÉPOCA
Dizem os pessimistas que a política é um circo – de horrores, talvez. Pois estão errados, e a culpa é, em grande parte, do público.
No circo, a plateia é chamada de “respeitável público” e faz por merecer o tratamento. Ela come pipoca, bate palmas, ri do palhaço, arregala os olhos quando o leão entra no picadeiro, suspira com os volteios da trapezista, de pernas esguias e biografia misteriosa. No circo, o público é família. Mesmo no circo romano, o Coliseu, os espectadores costumavam se dar algum respeito – e eram respeitados pelo imperador, que, vez ou outra, consultava o povo sedento de sangue para saber se um gladiador imobilizado pelo oponente deveria ou não deveria ser executado na arena. Os lutadores e o soberano se dobravam às predileções da turba, que não estava lá para contemplar mesuras e boas maneiras. De sorte que até mesmo ali, a seu modo rude e animalesco, o público era respeitável.
A política de nossos dias não é um circo, nem mesmo de horrores: ela é pior, e isso não porque os políticos desrespeitem o público, mas porque o público abdicou do próprio respeito. Às vezes temos a sensação de que o público em nome do qual se faz a tal política é repugnante, talvez mais do que as pequenas multidões que gargalhavam quando a cabeça dos nobres tamborilava aos pés da guilhotina, no terror da Revolução Francesa. O público é detestável.
Na semana passada, tivemos mais uma prova abrasiva dessa verdade. Imediatamente após a divulgação da notícia de que o ex-presidente Lula contraiu câncer na laringe, entrou em atividade, na internet, um vulcão de baixarias preconceituosas, ofensivas, injuriosas, para agredir um ser humano que adoeceu. Nas redes sociais, um grupo lançou uma campanha para tripudiar. Entre outras maldições, sentenciaram Lula a ir procurar seu tratamento no SUS, e proclamaram: “É melhor ele continuar vivo, ainda que sem voz, e parar de envenenar o mundo com suas palavras ignorantes”.
É claro que não podemos generalizar: não é a totalidade dos frequentadores das redes sociais que se comportam como hienas histéricas, como urubus descompensados, como trogloditas virtuais. Mas é claro, também, que são muitos. São milhares. Tanto que se tornou impossível ignorá-los. Eles constituem um sintoma grave – sintoma em todos os sentidos, do farmacológico ao psicanalítico – em que o ódio de classe atropela o debate das ideias.
Sim, ódio de classe. Quem manda Lula ir se tratar no SUS declara ódio contra Lula e também contra o SUS, contra a lei, contra tudo o que guarde uma reminiscência de assistência social e de pobreza. Esse discurso reedita a velha máxima brasileira: “Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”. Traduzindo: o SUS é a lei, e a lei só pode fazer mal; o SUS é como as penitenciárias; todo serviço público é odioso. Essa gente se recusa a admitir que, no SUS, muitos de nós já nos tratamos com sucesso, nem que tenha sido uma única vez na vida, embora a administração pública ainda padeça os males causados pelos ladrões e pelos parasitas incompetentes. Essa gente se enfurece porque Lula foi atendido num hospital de elite, mais ou menos como a personagem caricata da novela das 9, Tereza Cristina, se destempera, aos urros, porque a ex-pobretona Griselda ganhou na loteria e comprou uma casa no mesmo condomínio de luxo em que ela, a afetadíssima Tereza Cristina, tem sua mansão. O detestável público que agora insulta Luiz Inácio Lula da Silva é uma massa ignara de Terezas Cristinas esbravejantes, defendendo aos tapas seu condomínio imaginário. Condomínio que, honestamente, é uma favela moral de palácios com vidro à prova de bala (o SUS é melhor, inclusive para a saúde).
Antes falávamos do câncer e da aids como metáforas de fenômenos menos visíveis. Agora somos forçados a decifrar, na internet, de onde vem a metáfora do ódio e, pior, para onde ela aponta. Um câncer de laringe num líder populista é metáfora? Evidentemente, sim, mas a fúria espalhafatosa que ele atrai é presságio de doença mais preocupante.
Faz décadas, Nelson Rodrigues caçoou de Otto Lara Resende atribuindo a ele uma frase que se tornaria célebre: “O mineiro só é solidário no câncer”. Naquele tempo, o público ia ao teatro. Hoje, o público não sabe o que é solidariedade. Nem no câncer. Se ele não se der ao respeito, não haverá mais política. O debate de ideias sucumbirá ao desejo de exterminar o outro. E a voz do povo será a voz da treva.
3 comentários:
Caro Sr MURILO!!
Rir! Rir! é o melhor remédio.
As colunas se tornaram uma seção de "descarrego", o ambiente de trabalho deve estar muito estressante, e agora apareceu essa oportunidade de ouro - atacar os internautas.
Ainda, que se discorde e não se aprove o comentários do Internautas, mas 99% deles são bem humorados.
Sr. Bucci, o povo não é bobo. É claro que o ex-presidente LULA merece ter o melhor tratamento possivél, ele é humano e um estadista, porem não dá pra esconder o sol com peneira. Os que você acusa de odiarem o ex-presidente, também, são humanos que estão cansados de ver o bom atendimento médico para uma minoria em detrimento de um povo que morre esperando atendimento, morre na porta de hospitais lotados e sem médicos, que acredita e respeita os seus lideres mesmo diante de tantos escando-los praticados por eles. Mas, acredito que você não pode entender isso, pois é dificil chorar por um miseravél que não dá audiencia; o mais fácil é proteger quem pode encher o nosso bolso.
Chico Pedro disse ...
Concordo com você, se dissesse que o povo não deveria ser bobo/tolo, mas o pior, meu caro, é que está sendo bobo mesmo, quando defende esse discurso manjado dessa mídia brasileira vendida e partidária. Não é só SUS que é deficiente, grande parte do serviço público é, e em diversos aspectos. No entanto, vocês deviriam ter uma visão menos cega, partidária e odiosa e entender que essas deficiências não foram criadas pelo LULA. Elas já existem há décadas, mas infelizmente só agora vcs se deram conta disso.
Aqui vão algumas perguntas: Será que se o LULA fosse tão mau assim ele teria criado o SAMU? Por que será que Ele é tão querido pelo povão? Será apenas pelo BOLSA-FAMíLIA? Ou será pelo fato de Ele ter autorizado vários projetos que benefiassem pessoas menos favorecidas. Será por isso, o motivo de todo o ódio desses Internautas? Ou será por outros interesses excusos dessa egoísta Elite Dominante? Se for por isso, eu vou dizer: é safadagem e crueldade esse tipo de discurso hipócrita. Quero aproveitar e convidar vocês para visitar e utilizar o SUS para depois dizerem: agora eu sei o que é o SUS.
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