Felizes, desiguais e pouco democratas
GAUDÊNCIO TORQUATO
O Estado de S.Paulo - 06/11/11
Um ano atrás os brasileiros eram mais simpáticos à democracia. A sentença, dita assim, sem lastro estatístico, não causa tanta surpresa. Vez ou outra, somos tomados por surtos autoritários. Quando, porém, se mostra uma queda de nove pontos porcentuais na taxa - de 54% para 45% -, a afirmação soa estranha. E ao se completar o pensamento, dizendo que a queda do apoio à democracia no Brasil foi mais acentuada do que a média extraída de 18 países latino-americanos (cerca de 400 milhões de habitantes), entre os quais a Bolívia, o Peru, a Colômbia, a Venezuela, poucos hão de acreditar. Essa é a conclusão da 16.ª pesquisa feita pelo Latinobarómetro, renomado instituto chileno que, periodicamente, toma o pulso da democracia no continente.
Mas por que o nosso torrão estaria menos afeito à modelagem democrática, se exibe alto índice de satisfação social, garantido pela trombeteada conquista de 30 milhões de brasileiros que ascenderam ao patamar da classe média? Afinal, a democracia não é o sistema mais compatível com o ideal da felicidade humana?
Para quem ainda não sabe, os brasileiros foram elevados ao ranking dos povos mais felizes do planeta. É o que revela o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), ao mostrar a nota 6,8 que a nossa população atribui à sua vida, maior que a dos alemães (6,7) e apenas um pouco mais baixa que a dos belgas e irlandeses (6,9), que estão entre os mais ricos do planeta. A dissonância ganha reforço diante da divulgação de outro índice: no capítulo da igualdade de renda, o Brasil perde 13 posições, ficando atrás de países como Gabão e Mongólia. Triste constatação.
Tentemos, então, enxergar a radiografia em preto e branco: a comunidade nacional, apesar de ter menor número de pobres, continua muito desigual. Mas está satisfeita com a sua situação. Resta esclarecer um pequeno mistério: por que somos o país latino-americano com menor porcentual de aprovação da democracia?
É oportuno lembrar que índices de pesquisa não se anulam, devendo ser analisados em seus respectivos compartimentos. A leitura linear é a de que o nosso PNBF - o produto nacional bruto da felicidade - se expandiu na esteira do fator econômico. Como uma locomotiva, ele puxa os vagões das pessoas, determinando a sua maior ou menor satisfação, mais alta ou mais baixa avaliação dos governantes. Por exemplo, a presidente Dilma Rousseff (67%) só perde para o colombiano Juan Manuel Santos (75%) na apreciação sobre o desempenho dos mandatários da América Latina. Pesa, na radiografia sobre a democracia no continente, o impacto da crise econômica mundial sobre o cotidiano dos habitantes. Se o Brasil, entre as nações pesquisadas, foi menos atingido pela crise, é natural que seu governante receba o aplauso social.
Quanto ao maior desapreço por nossa democracia, a explicação passa por outros corredores. Comecemos por distinguir o Brasil da gestão Dilma do Brasil do estilo Lula. Ao sair do centro do palco, o ex-presidente fechou um ciclo, no qual ocupava todos os espaços, dirigia os atos, manobrava os bastidores, enfim, dava o tom da orquestra. Tão forte era a sua presença no palco que os atores em seu entorno, por mais esforços que fizessem para aparecer - alguns em situações constrangedoras -, eram ofuscados, permanecendo em posição secundária. Lula simbolizava o governo e suas circunstâncias.
Ao entrar em cena, a presidente Dilma mudou o cenário e a forma de atuação dos atores, a partir de sua personagem. O fator técnico ganhou proeminência, sob a régua de controles rígidos e intensa cobrança por resultados. Sob essa arquitetura, a administração expõe com nitidez as vidraças ministeriais, deixando escancarados desvios de gestores no comando de ministérios, cobrando apurações rigorosas, jogando pessoas implicadas no vapor torturante, tudo sob o bombardeio incessante das mídias e das redes sociais.
Se Lula usava o carisma como escudo para defender fronteiras devastadas do governo, Dilma usa a autoridade técnica para promover ajustes e mudanças nas frentes administrativas, dando a entender que não transige com desvios e proclamando o lema "quem pariu Mateus que o embale". Portanto, o corpo político, sob o figurino dilmista, torna-se alvo de intenso tiroteio e, assim, canaliza contra si a expressão da contrariedade social. A imagem da instituição é borrada. Basta ver a péssima avaliação que os brasileiros conferem aos políticos. Donde se pinça a inferência: a presidente ganha os louros da vitória econômica e os políticos recebem os apupos por conta da bateria de eventos negativos que marca a vida institucional. A democracia brasileira acaba sendo percebida pela população como veículo que conduz a vícios, corrupção, manutenção de costumes execráveis. Trata-se de um viés perceptivo que, infelizmente, vem ocorrendo. Sobra para ela menor apoio.
O fato é que a inflexão social sobre a nossa democracia deve ser analisada com atenção pela representação política, eis que sinaliza certo gosto pelo conservadorismo. Que pode resultar, mais adiante, em visão até mais radical. Aliás, a guinada conservadora já se manifesta há algum tempo. Pesquisa Datafolha (de meados deste ano) mostra que 55% de 5.700 pessoas ouvidas em 25 Estados se dizem favoráveis à pena de morte e 40% contra, sendo esse o maior índice desde 1991. O sentimento de impunidade estende-se pelos bolsões sociais, que enxergam nisso não apenas lerdeza do Judiciário, mas leniência do Legislativo.
Dito isso, voltemos ao aparente paradoxo. O ciclo Lula anunciou as maiores conquistas que o Brasil alcançou ao longo de décadas, a partir do alargamento do meio da pirâmide social, com a elevação da classe média ao primeiro lugar entre as classes. É verdade. Retrocedeu, porém, no campo do desenvolvimento humano. É o que mostra a recente radiografia do Pnud. Nos últimos dez anos, o País baixou seu IDH de 0,86 para 0,69. A melodia da orquestra, diz a voz do maestro, deve harmonizar os sons de todos os instrumentos.
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