Dez do onze
ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo - 14/09/11
Dez anos depois do brutal ataque terrorista aos Estados Unidos, a nossa consciência ainda se agita revendo as imagens da destruição das torres. Como todo mundo, quando vi as cenas das torres, pensei num erro ou num filme para, lamentavelmente, constatar como o "real" (aquilo que ocorre fora do nosso controle e a despeito de nossa vontade) podia assumir formas impensáveis, superando o meu mais radical surrealismo.
Imediatamente dei-me conta da espessura do mundo em que vivemos. O planeta fica mais cada vez menor, mas torna-se mais complexo e mais difícil de entender. Apesar de toda a nossa onipotência ideológica, científica e tecnológica - desse fantástico conjunto de certezas que nos fez destruir culturas, estigmatizar credos religiosos, chamar sem pensar duas vezes sociedades e etnias de "selvagens" e "primitivas", roubar e repartir continentes como foi o caso da America Pré-Colombiana, da África e do Oriente Médio -, eis que, de modo insuspeito, somos feridos por dentro.
O atentado - como em Pearl Harbor - vinha do ar, mas com aviões de passageiros e em pleno território americano. Havia um ataque sem declaração de guerra. Os inimigos não queriam tomar coisa nenhuma. Lutavam contra um modo de vida e por valores religiosos numa guerra que, sendo santa, não era um mero prolongamento da política por outros meios como manda o nosso figurino.
E para demonstrar essa subversão da racionalidade da "arte da guerra", essa criação do Ocidente europeu na sua imensa e inigualável experiência com todos os tipos de conflito (só entre 1500 e 1914 ocorreram mais de 140 conflitos de todos os tipos na Europa supercivilizada e inventora, entre outras maravilhas, da música sinfônica e do romance), o 11 de Setembro passa por cima de todas convenções que tornam o matar e o destruir atos obrigatórios de patriotismo, justificando a barbárie.
Aqui não tínhamos a recorrente idiotice de uma "guerra que iria acabar com todas guerras", mas um ato não previsto. David contra um Golias que caía estrondosamente. E para provar isso, seus autores não estavam neste mundo, mas no outro. Morreram com a destruição que fabricaram, colocando na vasta arena dos conflitos inventados pelo homem o elemento religioso que é, sem nenhuma dúvida, o centro paradoxal das mais contundentes arrogâncias humanas.
Essa foi a minha primeira leitura.
Testemunhávamos um conflito sem uma "terra de ninguém" e sem soldados devidamente uniformizados, arregimentamos em exércitos embandeirados e tocados a marchas militares. Seus mentores não eram figuras públicas que dominavam "a teoria da guerra" (como Leônidas, Alexandre, Napoleão, Nelson, Washington, Montgomery, Rommel, Koniev, Patton, etc., etc., etc.), mas seres invisíveis operando em rede e atuando de dentro para fora.
Eis o opróbrio deste nosso tempo de liberdade e de busca de felicidade - de uma modernidade em que a parte domina e tem precedência sobre o todo. Quanto mais individualismo, mais agressivas são as manifestações do todo que cobra pelos limites ultrapassados pelo uso abusivo da liberdade individual por grupo, indústria, país ou pessoa. Seja pelo desastre ecológico, seja como prova o terrorismo, pela destruição do velho código segundo o qual nenhum homem deve pagar pelos erros cometidos por outro homem.
Minha outra perturbação foi dada pelo sobressalto do ataque. Lembrei-me das vezes em que fui agredido inesperadamente. Uma vez, por um tapa na cara; noutro, por ter sido chamado na televisão de "proxeneta de índio"; doutra feita, por terem duvidado do meu amor. A violência que, como sabem os seus agentes, requer coragem, dinamita pontes e suprime mediações - as explicações, as desculpas, as contradições e as perspectivas que nos tornam humanos -, mobiliza o que há de pior no agredido que, imediatamente, se sente no dever de revidar na mesma moeda. Quando, porém, ele sucumbe ao mesmo tipo de reação e deseja beber sangue com sangue, ele vive a mesma loucura dos seus atacantes. Assim agindo, como ocorreu nessa desafortunada América contemporânea sob a égide da doutrina Bush, ele abandona os seus valores e repete - eis a contradição - a lógica do terrorismo que combate. Pois, como dizia Rousseau, só pode haver guerra entre países. Usar a força das armas contra o pecado ou contra o terrorismo não é fazer guerra, é praticar um exorcismo religioso dos mais arriscados. Antigamente isso era chamado de Inquisição.
Finalmente - se é que existe nesse episódio um ponto final -, jamais vi melhor comprovação do pessimismo de Schopenhauer quando ele dizia que este nosso mundo é pior do que o inferno. No inferno, você sabe por que sofre. Há um elo entre o que se fez o que se paga. Mas neste mundo, não há como saber os motivos do sofrimento recebido. O coração não desaba porque, mesmo sendo insignificante e muitas vezes covarde, contraditório, pecador e temeroso, mesmo sendo feito de carne e sangue, ele continua batendo esperançoso. Orgulhoso de si mesmo e de sua finitude.
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