Rebobine, por favor
ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 14/09/11
Se eu batesse as botas agora, meu filme talvez começasse com um momento desses que a gente não se dá conta
Não acredito em Deus nem em qualquer bônus ou penalidade para além do último suspiro. Como diria meu tio Carlão, botafoguense e, portanto, homem desprovido de ilusões: "Acabou, já era". A frase pode não ser das mais líricas, mas tampouco o é a morte, caro leitor, e envolvê-la em fumos literários serve apenas, como as flores sobre a cova, para disfarçar o mau cheiro que exala do assunto. Melhor é tomar o fim pelo que é: prosaico cessar de reações químicas e impulsos elétricos; bug derradeiro, tão certo quanto irreversível.
Mesmo não tendo a menor esperança de acréscimos ao tempo regulamentar, devo admitir que alimento uma expectativa, não diria "post-mortem", mas "in-mortem": gostaria muito que fosse verdade aquele papo de que, no instante em que se fecham as cortinas, a vida inteira passa na tela do pensamento, em marcha a ré, como uma fita sendo rebobinada.
Tal acontecimento nada teria de metafísico, seria apenas uma reação de nosso cérebro ao apagar das luzes, como um sonho, um delírio. E, como todo sonho, este REM final não primaria pela linearidade, indo de uma ponta a outra de nossa existência aos rodopios.
Se eu batesse as botas agora, meu filme talvez começasse com um momento de prazer corriqueiro, desses de que a gente nem se dá conta, ocupado por alguma tarefa tão urgente quanto desimportante. O calor do sol no rosto, por exemplo, ao abrir a porta pela manhã, para pegar o jornal. O sol, quem sabe, me remeteria a uma tarde da adolescência, na Bahia. O som do mar, a brisa, uma garota me fazendo um cafuné, depois de anos de batalha para que uma garota me fizesse um cafuné -y otras cositas más... Do calor da Bahia ao inverno paulistano, não faz muito tempo: estou sendo apresentado a meu amor. Eu a beijo. Surjo num bar com três amigos queridos, duas e meia da manhã: temos 25 anos e, aos brados, resolvemos todos os problemas da humanidade, anotando as soluções em guardanapos que, logo mais, esqueceremos sobre a mesa. Agora vejo a multidão de cima dos ombros do meu pai, na comemoração de uma vitória do Corinthians, na Paulista. Dou uma cambalhota na piscina de um sítio e a coisa vai ficando abstrata. Há uma sucessão de sabores e cheiros. Boio em brigadeiro, nado em vinho. Refogue alho e cebola, inconsciente! Traga-me uma picanha, exijo cheiro de jasmim! Beatles! Quero ouvir Blackbird mais uma vez! Veja só, minha avó. Três pedaladas na sequência, na bicicleta sem rodinhas. Agora um peito: quando menos espero, surge o útero -e o resto é silêncio.
(Claro, haveria tristezas, também, neste crepúsculo boreal. Pés na bunda ou na quina do móvel, solidão e medo: mas no cômputo geral, uma aflição seria consolada por um pomar, o tédio por um Mark Twain, uma angústia pela visão de minha mulher, de manhã cedinho, passando hidratante nas pernas.)
Talvez, durante esta última sessão de cinema, ter vivido uma boa vida, afinal de contas, fizesse sentido, e o prazer do resumo seria uma espécie de brinde, de bem-casado que se come na saída da festa -mas, infelizmente, não se leva nos bolsos, pois levar é verbo transitivo e mortos, que pena, não transitamos mais.
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