Ficções
LÚCIA GUIMARÃES
O Estado de S.Paulo - 19/09/11
RIO
Meu entusiasmo era borbulhante. Não perco esta, prometi. Quando soube quem ia encerrar o 7.º Pen World Voices da Literatura Internacional, convenci meu jovem assistente, que não deu sinais vitais diante da menção do nome Harold Bloom: "Domingo, dia 1o de maio em Nova York, é dia de trabalhar. Vem conosco registrar o evento em vídeo". Aos 81 anos e com a saúde visivelmente deteriorada, Bloom teria dito que não ia mais fazer aparições públicas.
Foi uma tarde memorável para o meu assistente e também para o cinegrafista - um eleitor que votou duas vezes em George Bush, uma em John McCain e promete votar num republicano, em 2012, ainda que o candidato seja um boneco inflável. Harold Bloom, um dos maiores críticos literários do mundo, atravessa gerações e cegueira ideológica para eletrizar uma plateia com sua erudição idiossincrática e seu senso de humor.
Gravamos tudo e comecei a legendar em português um primeiro trecho. Coloquei no meu site, que é um exemplo de inconsistência porque não tenho tempo ou determinação para atualizar o conteúdo com frequência. E para quê? O vídeo não carrega justamente para o leitor com quem eu queria compartilhar o privilégio das palavras do sábio autor de O Cânone Ocidental.
"A banda larga no Brasil é uma ficção", comentou, resignado, um certo executivo da mídia brasileira. Como pode ser?, cantou esta exilada. Nossos céus têm mais estrelas, nossas várzeas têm mais membros do Orkut, nossos bosques têm mais tuiters, nossa vida mais amores on-line.
Caro leitor, vou falar bem devagar para o caso de sua conexão ser tão ruim quanto a do hotel carioca de onde escrevo.
A banda larga é mesmo uma ficção nesta terra onde canta o sabiá. E, suponho, deve dar muito dinheiro. Tanto quanto o que um esperto ganharia se conseguisse patentear o cubo de gelo.
No hotel não luxuoso onde me encontro, a fictícia banda larga oferecida por uma "companhia especializada", de fantasiosa velocidade de 500kbps, custa R$ 60 por dia. Por dia. Expliquei ao gerente que nem no hotel Four Seasons de Chiang Mai, na Tailândia, a banda larga, mesmo se incluísse um funcionário para me abanar com plumas de avestruz enquanto escrevo, poderia custar tanto. Acho que o gerente carioca ficou impressionado. Ou se envergonhou por não ter pensado no detalhe do ventilador humano, porque o custo caiu para R$ 0. Claro que não vou entregar a rapadura, porque sei que o gerente está sendo bacana e pode ser punido por superiores pela concessão da mordomia. Pior, se eu conto, logo vai se formar uma fila de mendicantes com seus laptops dobrando a esquina da avenida fulano de tal.
Não compreendo como o pujante consumidor brasileiro tolera esta lentidão em sua rotina cada vez mais dependente de uma banda larga real. E paga tão caro por ela. Não estou nem falando de baixar as nove horas do documentário Shoah. Qualquer site de informação é recheado de multimídia. Começo a exibir sintomas de crise de abstinência. Acostumada a abrir as páginas de pelo menos seis jornais, várias vezes por dia, estou ficando desinformada.
E a banda estreita não é o único exemplo da anemia dos serviços enfrentados pelo consumidor contemporâneo. Um voo internacional, como Nova York-Rio, custa cada vez mais caro, apesar do aumento do tráfego entre as duas cidades. E, na minha experiência com uma companhia aérea americana, os aviões usados agora são mais velhos, a poltrona "reclinável" não se move mais do que 20 graus e meus 174 cm de altura fazem com que o joelho viaje grudado no assento da frente. Pagar R$ 3.400 para passar duas noites, ida e volta, nessa lata de sardinhas, com o serviço pífio de bordo, é uma experiência bíblica.
Você gosta de escapar vivo de uma corrida de táxi pelo trânsito carioca? Fica satisfeito porque sabe que é proibido dirigir e falar no celular? Se for em dia de jogo, pode rezar para seu santo padroeiro. Os motoristas usam a tela do aparelho GPS para assistir à partida com o som da narração vindo da rádio FM. Numa noite de chuva, meu ateísmo foi testado pela aventura. Perguntei ao meu piloto: não é proibido assistir à TV e dirigir? "Claro", ele zombou da minha ignorância. "Mas eu tenho vidro fumê, fica tranquila." Só me acalmei quando me dei conta que o fraco Brasil x Argentina, de quarta-feira passada, não ia oferecer distração do volante.
Apesar de carioca e diplomada na sinuosa etiqueta das transações imaginárias, em Nova York, sou tratada como uma espécie de pistoleira de aluguel quando os amigos americanos querem reclamar - da operadora de celular, de cabo, da loja de eletrodomésticos, do seguro-saúde. Com doses certas de cólera, oratória e intimidação, já tive embates em que fui tratada com uma deferência reservada ao Tony Soprano. É exaustivo, mas a catarse ajuda a desopilar o espírito diante dos poderes que nos tungam diariamente.
Cada vez mais convencida de que há gente disposta a pagar muito por nada, dei uma olhada no site do Instituto Nacional de Patentes Industriais. Ninguém tentou patentear o cubo de gelo. Hum...
Meu entusiasmo era borbulhante. Não perco esta, prometi. Quando soube quem ia encerrar o 7.º Pen World Voices da Literatura Internacional, convenci meu jovem assistente, que não deu sinais vitais diante da menção do nome Harold Bloom: "Domingo, dia 1o de maio em Nova York, é dia de trabalhar. Vem conosco registrar o evento em vídeo". Aos 81 anos e com a saúde visivelmente deteriorada, Bloom teria dito que não ia mais fazer aparições públicas.
Foi uma tarde memorável para o meu assistente e também para o cinegrafista - um eleitor que votou duas vezes em George Bush, uma em John McCain e promete votar num republicano, em 2012, ainda que o candidato seja um boneco inflável. Harold Bloom, um dos maiores críticos literários do mundo, atravessa gerações e cegueira ideológica para eletrizar uma plateia com sua erudição idiossincrática e seu senso de humor.
Gravamos tudo e comecei a legendar em português um primeiro trecho. Coloquei no meu site, que é um exemplo de inconsistência porque não tenho tempo ou determinação para atualizar o conteúdo com frequência. E para quê? O vídeo não carrega justamente para o leitor com quem eu queria compartilhar o privilégio das palavras do sábio autor de O Cânone Ocidental.
"A banda larga no Brasil é uma ficção", comentou, resignado, um certo executivo da mídia brasileira. Como pode ser?, cantou esta exilada. Nossos céus têm mais estrelas, nossas várzeas têm mais membros do Orkut, nossos bosques têm mais tuiters, nossa vida mais amores on-line.
Caro leitor, vou falar bem devagar para o caso de sua conexão ser tão ruim quanto a do hotel carioca de onde escrevo.
A banda larga é mesmo uma ficção nesta terra onde canta o sabiá. E, suponho, deve dar muito dinheiro. Tanto quanto o que um esperto ganharia se conseguisse patentear o cubo de gelo.
No hotel não luxuoso onde me encontro, a fictícia banda larga oferecida por uma "companhia especializada", de fantasiosa velocidade de 500kbps, custa R$ 60 por dia. Por dia. Expliquei ao gerente que nem no hotel Four Seasons de Chiang Mai, na Tailândia, a banda larga, mesmo se incluísse um funcionário para me abanar com plumas de avestruz enquanto escrevo, poderia custar tanto. Acho que o gerente carioca ficou impressionado. Ou se envergonhou por não ter pensado no detalhe do ventilador humano, porque o custo caiu para R$ 0. Claro que não vou entregar a rapadura, porque sei que o gerente está sendo bacana e pode ser punido por superiores pela concessão da mordomia. Pior, se eu conto, logo vai se formar uma fila de mendicantes com seus laptops dobrando a esquina da avenida fulano de tal.
Não compreendo como o pujante consumidor brasileiro tolera esta lentidão em sua rotina cada vez mais dependente de uma banda larga real. E paga tão caro por ela. Não estou nem falando de baixar as nove horas do documentário Shoah. Qualquer site de informação é recheado de multimídia. Começo a exibir sintomas de crise de abstinência. Acostumada a abrir as páginas de pelo menos seis jornais, várias vezes por dia, estou ficando desinformada.
E a banda estreita não é o único exemplo da anemia dos serviços enfrentados pelo consumidor contemporâneo. Um voo internacional, como Nova York-Rio, custa cada vez mais caro, apesar do aumento do tráfego entre as duas cidades. E, na minha experiência com uma companhia aérea americana, os aviões usados agora são mais velhos, a poltrona "reclinável" não se move mais do que 20 graus e meus 174 cm de altura fazem com que o joelho viaje grudado no assento da frente. Pagar R$ 3.400 para passar duas noites, ida e volta, nessa lata de sardinhas, com o serviço pífio de bordo, é uma experiência bíblica.
Você gosta de escapar vivo de uma corrida de táxi pelo trânsito carioca? Fica satisfeito porque sabe que é proibido dirigir e falar no celular? Se for em dia de jogo, pode rezar para seu santo padroeiro. Os motoristas usam a tela do aparelho GPS para assistir à partida com o som da narração vindo da rádio FM. Numa noite de chuva, meu ateísmo foi testado pela aventura. Perguntei ao meu piloto: não é proibido assistir à TV e dirigir? "Claro", ele zombou da minha ignorância. "Mas eu tenho vidro fumê, fica tranquila." Só me acalmei quando me dei conta que o fraco Brasil x Argentina, de quarta-feira passada, não ia oferecer distração do volante.
Apesar de carioca e diplomada na sinuosa etiqueta das transações imaginárias, em Nova York, sou tratada como uma espécie de pistoleira de aluguel quando os amigos americanos querem reclamar - da operadora de celular, de cabo, da loja de eletrodomésticos, do seguro-saúde. Com doses certas de cólera, oratória e intimidação, já tive embates em que fui tratada com uma deferência reservada ao Tony Soprano. É exaustivo, mas a catarse ajuda a desopilar o espírito diante dos poderes que nos tungam diariamente.
Cada vez mais convencida de que há gente disposta a pagar muito por nada, dei uma olhada no site do Instituto Nacional de Patentes Industriais. Ninguém tentou patentear o cubo de gelo. Hum...
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