domingo, setembro 18, 2011

FERNANDA TORRES - Minotauro


 Minotauro
FERNANDA TORRES
FOLHA DE SP - 18/09/11 

O apagão fulminante é o ato de misericórdia do guerreiro, a grande prova de sua civilidade


Sou uma das 15 mil pessoas que vociferam no evento de 27 de agosto do UFC no Rio de Janeiro. Shogun soca a fronte de Forrest Griffin de cima para baixo com todo o peso do corpo; quando cansa, vira a mão de lado em forma de marreta e continua encacetando o opositor inerte.

Sentada ao lado de Álvaro Barreto, mestre de jiu-jítsu formado por Carlos e Hélio Gracie, escuto o Yoda repetir baixo: "Tem que finalizar... tem que finalizar".

Por finalizar entenda-se apagar o parceiro de maneira rápida e sem martírio. Esse, revela Barreto, é o objetivo primeiro do embate.

Percebo que o professor não admira chutes e bofetadas. Embora domine todas as artimanhas do ataque, sua predileção são as chaves de pernas e braços.

"O sufocamento é o golpe perfeito. Aperta-se o pescoço do adversário até interromper a corrente sanguínea no cérebro. Ele vai à lona antes mesmo de sentir falta de ar." Shogun não atingiu tal requinte. Coube ao juiz dar por encerrada a revanche ao 1min53s do primeiro round. Segundo as regras, o árbitro deve intervir quando o que está apanhando para de se defender.

Chega a vez do Minotauro no octógono. Lutador experiente, operou a bacia e poucos acreditam no seu retorno. Brendan Schaub o acerta nas fuças mais de uma vez até que, com uma sequência veloz de bordoadas, o Homem Touro nocauteia o adversário, escala as grades e urra em delírio com a plebe ignara.
O vale-tudo é o mais próximo a que cheguei do Coliseu romano. A diferença é que, depois de Jesus Cristo, a morte caiu em desuso.

Ao espetáculo da execução pública eu só assisti na Espanha. Lá, a tauromaquia resiste intacta.
Não era um dia de gala na grande Plaza de Toros, mas não importa. Qualquer tourada de segunda é capaz de impressionar o leigo.

Assim como ensina Barreto, o bom toureador deve matar o monstro sem infligir sofrimento. Se perfurar com exatidão o ponto nevrálgico da coluna vertebral do animal, a tonelada arriará como gelatina, e a peleja estará concluída com a grandeza de uma obra de arte.

Naquela tarde, nenhuma besta havia tido a sorte de encarar um pelejador talentoso.

Na terceira apresentação, o incapaz manejou a capa sem maiores brios até se encaminhar para o gran finale, escondendo a espada debaixo do pano. Ruim de mira, chamou a fera pra cima uma, duas, três vezes, a cada vez uma estocada, e nada de o boi sucumbir. A arquibancada ecoou em vaias. Atrás de mim, quatro senhorzinhos espanhóis observavam a carnificina enojados. Um deles não aguentou e berrou para quem quisesse ouvir: "Dá um rifle pra ele!".

Quando o mastodonte por fim desabou, a turba arremessou as almofadas dos assentos no picadeiro. O mártir foi amarrado pelo chifre a uma carroça e arrastado em volta olímpica sob ovação da plateia.
Na hora, me lembrei da resposta da professora de religião a quem, culpada, perguntei se era pecado assassinar borboletas. "Não, minha filha, mas mata rapidinho."

O apagão fulminante é o ato de misericórdia do guerreiro, a grande prova de sua civilidade.
Que o diga o bailarino Anderson Silva.

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