Ensaios d'amor
DANIEL PIZA
O Estado de S.Paulo - 18/09/11
O amor e o ensaio têm em comum o caráter de ser uma tentativa, a articulação de um entendimento que deve sempre rever a si mesmo, a aproximação ciente de que o movimento é vital e não final, a recusa ao dogma da perfeição e ao mesmo tempo a crença de que sempre há o que melhorar. Escrever um bom ensaio sobre o amor, portanto, parece fácil, mas não é, já que tatear sobre o intangível leva aos abismos entre as palavras. "O amor é avesso a qualquer enquadramento, refratário às ideologias", escreve o francês Pascal Bruckner em O Paradoxo Amoroso (editora Difel), e seu livro é bom justamente por não transformar o amor numa ideologia, numa utopia, e assim defendê-lo como poucos. Barthes que me desculpe, mas os fragmentos do discurso amoroso de Bruckner são de uma grandeza que raramente se vê nos ensaios sobre o tema.
O que ele chama de "paradoxo"? O fato de que o amor nasce sempre sob o signo do entusiasmo, da entrega febril, e depois vai se convertendo numa rotina tediosa, sem aventura, repleta de picuinhas e injustiças. O romance da libertação a dois gradualmente passa a ser o drama da prisão partilhada. E dão greve ao prazer, cometendo uma deslealdade antes mesmo de passar a uma traição concreta. Bruckner cita a passagem de Proust numa carta a um amigo, para o qual o grande ficcionista vaticina o futuro "desses homens fracassados a ponto de viver vinte anos ao lado de um ser que os engana sem que eles percebam, que os odeia sem que eles saibam, que os rouba sem se confessar, tão cegos sobre os defeitos dos filhos quanto sobre os vícios de suas mulheres". O amor nasce como luz, mas logo os amantes se veem cegos.
Bruckner está particularmente preocupado com o amor na atualidade, em que não é a repressão que sufoca, mas a liberdade, ou melhor, o que o individualismo cínico de hoje entende por liberdade. "Tanto mais que a emancipação, sobretudo para as mulheres (...), multiplicou o peso de novas obrigações. As relações íntimas são calcadas nas do trabalho: o retorno sobre o investimento deve ser maximizado. (...) Sonho com uma relação humana que jamais extravase: você me agrada, ficamos juntos; você me cansa, eu o dispenso. Experimentamos o outro como um produto." Essa não é uma abordagem muito diferente da de outro livro recém-publicado no Brasil, O Amor nos Tempos do Capitalismo, de Eva Illouz, cujo título sugere um tratado marxistoide que não é seu conteúdo. "A internet estrutura a busca do parceiro como um mercado", nota a autora, que mostra como os discursos da psicoterapia e do feminismo se somaram a isso.
Illouz também vê um paradoxo, este no fulcro da cultura consumista: "Ao mesmo tempo que o discurso do individualismo triunfal e autoconfiante nunca foi tão disseminado e hegemônico, a demanda de expressar e praticar o próprio sofrimento, seja em grupos de apoio, seja em programas de entrevistas, na terapia, nos tribunais ou nos relacionamentos íntimos, nunca foi tão estrídula". A indústria da autoajuda e dos antidepressivos induz à expectativa de que os problemas sejam resolvidos como "fast food", como um objeto de consumo que sacia meus desejos, na verdade insaciáveis em sua rede de dependência; o desejo novo, afinal, tem como trunfo parecer mais promissor, e no entanto as decepções se multiplicam à mesma escala. Como diz Gley P. Costa na revista IDE 52 da Sociedade Brasileira de Psicanálise, sob o tema "Amores", não se pode pensar no amor verdadeiro "sem disposição para o autossacrifício em prol do parceiro". E autossacrifício é tudo que nossa era desencoraja.
Voltando a Bruckner, que diz tudo isso e mais um pouco, ao criticar o egoísmo defendido por seriados como Sex and the City: "O amor é uma aventura de que não queremos nos privar, mas com a condição de que ela não nos prive de nenhuma outra". Seduzir se torna uma caça a troféus, ao exercício da vaidade - como quando alguém numa relação estável diz que "só não quero saber" de eventuais casos de sua parceira, na verdade querendo dizer que quer ter o direito de fazer o que quiser desde que consiga não magoar o outro. "Há uma maldade nova em nossos amores: a adesão a mim mesmo me autoriza a apunhalar o outro pelas costas". Trata-se o outro com valores utilitaristas: se não serve mais, será descartado; a fidelidade se torna um esforço que termina deixando um com raiva do outro. O pior, diz Bruckner, é que o casal se mostra indigno da paixão que o fez começar e, assim, deixa a monotonia vencer.
Bruckner não acredita então no que Ovídio, em sua Arte de Amar (livro que também acaba de ser reeditado: Amores & Arte de Amar, editora Penguin Companhia), chama de "amores sólidos", livres da indulgência mútua? Muito ao contrário. Ele cita outro clássico, John Milton, "Um bom casamento é uma conversa variada e feliz", e também lembra a frase de Borges, de que o amor é amizade e sexualidade - às quais se poderia acrescentar a ternura, o sentimento de que o ser amado mexe muito mais conosco do que um simples amigo atraente. É um equilíbrio sempre móvel entre segurança e aventura, a não ser vencido pela desconfiança ou egoísmo; não faz sentido ferir tanto quem amamos, cobrando perfeição como se o menor desapontamento fosse justificativa para magoá-lo, para trocar uma bela história por um laço superficial. O amor duradouro é uma conversa contínua, uma troca de duas vozes sempre redescobrindo a si mesmas. É um ensaio, não um contrato.
A arte de ver. É pequena a exposição de Saul Steinberg na Pinacoteca do Estado, e falta a ela mais do trabalho que o consagrou, o de ilustrador da revista The New Yorker. Mas há ali material suficiente para entreter os olhos com inteligência (a inteligência entretém, sim senhor), em especial os grandes desenhos que fez na Itália e no sul da França. Como bom nova-iorquino, esse romeno que se educou na Europa e se radicou nos EUA tinha um olhar para o mundo inteiro, tendo até visitado o Brasil de São Paulo a Belém, mas quando chegou à cidade que o adotou atingiu a síntese de suas influências e faculdades. Riu das madames em desfile, riu de certo provincianismo de Nova York, riu das ambições estressantes; mas sobretudo se encontrou ali, naquela mistura produtiva, naquela geometria vital.
O engraçado é ver as tentativas de passar um verniz de seriedade ou complexidade em sua obra, dizendo que um dia faria "um grande quadro" ou citando filósofos para tratar do que se orgulha de ser um simples trabalho gráfico. Steinberg, principal influência de Millôr Fernandes (da subestimada arte gráfica de Millôr), vê o mundo com linhas em movimento, que criam o efeito tridimensional com apenas algumas diagonais ou cruzamentos, e sempre reserva pontos da imagem que serão carregados com ornamentações (quando mais irônico) ou áreas preenchidas de nanquim ou cores (quando mais lírico). É claro que se pode falar em seu trabalho da influência do modernismo que absorveu em sua formação, mas não há nada obscuro ou abstrato em seus desenhos. O que eles mais fazem é dar saudades de um tempo em que os artistas sabiam que desenhar não é organizar o mundo, mas captar sua desordem.
Rodapé. Gosto mais de Jeffrey Steingarten, "o homem que comeu de tudo", entre os cronistas de gastronomia atuais, mas Anthony Bourdain é muito divertido, como se vê agora em Ao Ponto, novo livro do autor de Cozinha Confidencial. Por ter sido chefe e conhecido bem o fracasso antes da fama, ele não leva tão a sério um tema que parece estar sendo cada vez mais levado a sério. Bourdain tira sarros dos ricaços que pagam caro em restaurantes que não o valem; critica essa noção de que viciados são apenas doentes; afirma que a espécie humana foi projetada "para procurar e ingerir carne"; ataca jornalistas que se vendem por um prato de lentilhas; e, com particular interesse para o cenário brasileiro, desmonta essa mania atual de vender comidas caseiras ou rústicas a preços exorbitantes (alguns lugares andam vendendo arroz-feijão e purê como se fosse trufa com foie gras)... Ah, sim, ele também descreve seus prazeres culinários, como o lendário pássaro "ortolan" que come ao lado de chefs estrelados. E diz coisas como: "Maltratar a comida significa desperdiçar ingredientes de boa qualidade", dando ênfase ao fato de que viajar para provar esses ingredientes nos locais em que são feitos com o devido frescor é a maior lição que se pode ter.
Por que não me ufano (1). Nada mais tragicômico do que ver os esforços do governo brasileiro para justificar algumas medidas econômicas, como se conseguissem disfarçar que vestem o cobertor curto entre conter a inflação e não deixar o crescimento cair a um ritmo vergonhoso. O resultado para o contribuinte, claro, é o mesmo de sempre: um custo de vida cada vez mais alto, com cada vez mais impostos para pagar.
Ou melhor, há algo mais tragicômico, sim: é ler nos jornais que o ministro do Turismo caiu por usar verbas públicas para pagar despesas particulares e que foi substituído por outro apadrinhado do oligarca Sarney, outro peemedebista do Maranhão. E logo depois ver Dilma Rousseff dar tapinhas de apoio ao partido aliado, embora a mídia chapa branca jure que ela esteja promovendo uma "faxina" na corrupção federal. Trocar uma sujeira por outra é limpar?
Por que não me ufano (2). Passo alguns dias em Belém, onde a Feira Pan-Amazônica do Livro fez grande sucesso de público. Aliás, de Passo Fundo, RS, a Belém, PA, as feiras dessa coisa obsoleta chamada literatura em papel continuam lotando... Fiz ótimos passeios, como relato no blog, mas também conversei com muitos paraenses sobre a questão da divisão do Estado em três unidades: Pará, Carajás e Tapajós. Não parece haver consenso. Brasileiros que somos, vemos com enorme desconfiança qualquer coisa que crie novos aparelhos estatais e seus feudos políticos, ainda mais nas terras mais remotas e pobres, onde algumas famílias mandam e desmandam e pode ser que fiquem ainda mais poderosas agora. Ao mesmo tempo, levar alguma ordem institucional para regiões aonde a lei raramente chega faz sentido, já que o Estado é tão grande e complexo, com riquezas minerais ao lado de calamidades sociais. Falta debate mais nacional, não?
Nenhum comentário:
Postar um comentário