Acolher ou incriminar?
BERENICE GIANNELLA
FOLHA DE SP - 03/09/11
O caso das crianças que promovem arrastões na Vila Mariana põe a nu uma grave falha. Analisando a questão longe do senso comum suscitado pelo clamor público, vê-se que o Estado e a sociedade brasileiros têm sido incompetentes para evitar o mal maior, que é a entrada de suas crianças e adolescentes na criminalidade.
Desse ponto de vista, o episódio das meninas da Vila Mariana é, por um lado, positivo: ele mostra a dificuldade de articulação das políticas públicas no sentido de se tratar essa população de maneira integral e preventiva, evitando sua entrada no mundo delinquencial.
Por outro -e aí está o aspecto negativo-, passou-se a ver o caso como espetáculo midiático e, nesse diapasão, não tardam a aparecer os especialistas de plantão com suas soluções drásticas, para não dizer mágicas.
É o caso daqueles que advogam a internação ou o abrigamento compulsório das "crianças arruaceiras" com menos de 12 anos. Além de terminantemente ilegais, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal vedam iniciativas do gênero, tais soluções parecem oportunistas, por não irem às raízes do problema.
A receita para lidar com a questão está posta há 21 anos, desde a promulgação do ECA. Reza o estatuto que todos os entes da Federação, a sociedade e a família devem se articular para garantir a observação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Em termos práticos, isso quer dizer que esses atores têm de arregaçar as mangas e integrar os serviços públicos que prestam, articulando políticas preventivas eficientes, acolhendo e tratando essas crianças e adolescentes.
Ações de prevenção deveriam ser adotadas já para os primeiros anos escolares, quando várias crianças dão sinais de que têm famílias desestruturadas ou vivem em situação de risco -que, mais tarde, se nada for feito, as levará para os atos infracionais.
A Fundação Casa, entidade que presido desde 2005, tem sido nos últimos tempos a caixa de ressonância da ausência de um trabalho efetivo e eficiente nessa área, com papel proativo, e não reativo. Nossa clientela é típica: jovens que abandonaram a escola sem que houvesse providências, filhos de famílias desestruturadas, sem acesso a serviços básicos e que acabam na criminalidade por não terem sido resgatados anteriormente.
É a velha história da crônica da morte anunciada. Nos últimos dois anos, cresceu drasticamente o total de internações na Fundação Casa sem que houvesse, no mesmo período, um aumento proporcional da criminalidade infanto-juvenil.
De uma média mensal de 5.335 jovens atendidos em 2007, saltamos para os mais de 7.200 atuais (total que já alcançou os 7.800 em alguns meses).
Se houvesse uma eficiente articulação dos serviços existentes que detectasse os problemas que levam à criminalidade e agisse proativamente para corrigir os rumos e propiciar atendimento integral a crianças e adolescentes, teríamos menos vidas comprometidas com essas estatísticas tristes.
Os instrumentos para resolver o problema estão aí. Conselhos tutelares, sistema único de assistência social, Varas da Infância e da Juventude, escola... Não faltam estruturas. O que falta é integrá-las de maneira inteligente para que possam intervir eficientemente.
A questão da prevenção se faz urgente. E o caso dessas crianças e jovens da Vila Mariana serve de alerta. Querer encarcerá-las sem antes lançar mão de instrumentos que o país já tem é decretar, a priori, a falência do Estado brasileiro.
BERENICE GIANNELLA é procuradora do Estado, mestre em direito processual penal pela USP e presidente da Fundação Casa.
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