domingo, agosto 21, 2011

HUMBERTO WERNECK - Ah, o linguajar do pessoal...



Um lugar ao sol
HUMBERTO WERNECK
 O Estado de S.Paulo - 21/08/11

Até que eu gostaria de um lugar ao sol - mas certamente não aquele ali, um descampado onde me puseram para quarar, de pé sobre um piso de cimento, a uma distância insensata da sombra mais próxima. E nem podia reclamar, pois eu próprio havia providenciado a encrenca.

Começara meses antes, quando, numa reportagem sobre Cuba, eu mencionei um tratamento, supostamente infalível, que um médico de Havana tinha inventado para o vitiligo. Embora restrita a um entrevírgulas, a informação parece não ter escapado a nenhum dos leitores da IstoÉ, a julgar pela quantidade de cartas e telefonemas (foi antes do e-mail) que desabaram na redação. A tal ponto que ao lado de cada telefone foi preciso afixar um lembrete para orientar quem quisesse saber mais sobre o prodigioso tratamento. Por pouco não tivemos de criar um serviço Vitiligue.

A reportagem era simpática ao povo cubano, mas não tanto às instituições da Revolução, que chamei de ditadura. Foi o que bastou para que amigos me puxassem as orelhas ideológicas, levando-me a enumerar aberrações evidentes como a falta de liberdade de imprensa e de alternância no poder. "Eu sei", irritou-se ainda mais um deles, aliás jornalista, "mas precisava dizer?!" - e rogou praga: eu nunca mais conseguiria pôr os pés em Cuba. Cheguei a acreditar. Semanas mais tarde, porém, veio um convite oficial para voltar à ilha. Não, não esperavam de mim uma linha que fosse, seria apenas uma visita.

Já no primeiro dia estranhei a programação: um giro por um dos maiores hospitais de Havana, com demorada escala em todas as enfermarias. Aos poucos fui compreendendo a situação em que me metera ao divulgar a história do vitiligo. Fechada ainda ao turismo convencional, Cuba estava inaugurando um "turismo de salud". Mas a ficha só me caiu completamente no dia seguinte, quando, mal tomado o café da manhã, meus amáveis guias me conduziram a outro hospital, este especializado em cirurgias de varizes.

Quando dei por mim, estava numa sala amplíssima, coalhada de leitos altos e estreitos sobre os quais dúzia e meia de pacientes jaziam na mesma posição, os joelhos apontando para o alto e as pernas em ângulo reto, como se aquelas pessoas estivessem sentadas, mas na horizontal. Para cada par de batatas da perna havia um cirurgião em frenética atividade, como numa linha de montagem, a extrair veias rotas com uma espécie de agulha de tricô. "Não é magnífico?", exuberava o médico encarregado de me acompanhar. Depois, em sua sala, contou que o tratamento, gratuito para cubanos, para estrangeiros custava algumas centenas de dólares, mas que - e aí sorriu, simpaticoto - para mim sairia de graça. "Mas não tenho varizes..." O homem não desistiu: "¿A lo mejor tu papá, tu mamá, tu abuelita...?". Não, gracias, a família agradece.

Foi para evitar mais espetáculo de derramamento de sangue que, no terceiro dia, me antecipei e propus aos anfitriões uma visita ao Hospital Psiquiátrico - sobre o qual Hélio Pellegrino me havia falado com sua autoridade no assunto e seu hiperbólico entusiasmo. E agora lá estava eu, coisa de doido, aguardando ser recebido pela direção da casa. Pediram que esperasse ali um segundito - e ali era o supracitado deserto de cimento escaldante, naquela altura do dia em que toda a sombra que fazemos se esconde sob nossos pés.

Ao cabo de 1.800 segunditos, ou meia hora de forno, fui conduzido ao outro extremo térmico: uma sala refrigerada por dois enormes aparelhos, sacolejantes em seu samba glacial e corpulentos como guarda-roupas à antiga, por certo remanescentes do capitalismo. No outro lado da mesa, à minha frente, o diretor do hospital falava, falava, enquanto meu corpo exposto ao gélido bafo da morte, regredia à posição fetal. "Protege o peito, filho" - a recomendação materna ressoou das profundas da infância, e tratei de me abraçar à mochila. Boa cara não devo ter feito, pois dali a pouco alguém naquele iglu veio em meu socorro: "Tengo la impresión que el compañero Humberto se va a congelar", alertou. A reunião, Deus e Marx sejam louvados, foi encerrada. Faltava percorrer as dependências do hospital, mas el compañero no está nada bien,¿verdad? - e, no que me pareceu ser uma operação degelo, me proporcionaram mais alguns milhares de segunditos de lugar ao sol.

Nenhum comentário: