Prateleiras em extinção
BARBARA GANCIA
FOLHA DE SP - 21/08/11
Era só o que faltava. Vem esse espertinho do Steve Jobs querer bagunçar o coreto bem no meio do "meu processo". Justo agora que a tia Sukita aqui está começando a entender a diferença entre upload e download chega esse pilhador do salário alheio e detona a bomba.
Por que eu decidiria guardar tudo o que é meu no seu armazém, sr. Jobs? Quem disse que uma consumista ao meu molde e feitio será capaz de abrir mão de seus quindins?
Não sabe que tenho xodó pelo meu CD com capinha metálica do Jacques Lu Cont ou que a vida não pode ser vivida em glória sem a companhia do DVD "Easy Rider-Special Edition", que acompanha livrete com fotos?
De onde o maluco da Apple tirou a ideia de que vou guardar os meus documentos, as fotos, os livros, enfim, meu mundinho idealizado do Zé Rodrix, numa nuvem que ele chama de iCloud (ai, Cláudio!) em algum canto virtual que alugarei no éter como se fosse vaga de estacionamento da Estapar?
Não sei se o nobre leitor percebeu o cenário que nos espera. Não bastasse dedicar a quase totalidade de minhas entradas mensais à compra de músicas e aplicativos, agora torrarei até o último centavo em giga ou google (ou jegue?), lá em uma dimensão que é manifesta, mas não táctil.
Minha mais recente despesa no iTunes foi uma trena digital, a "Easy Measure", que tem ajudado horrores na reforma da casa nova. Você aponta o telefone para o objeto e surge no visor uma régua com marcação. Certas coisas facilitam a vida, ainda que uma reforma seja uma reforma, seja uma reforma (Gertrude Stein), empreitada que mistura as emoções de um ataque terrorista com as de ser destroçado por um mandril faminto enquanto um tsunami destrói tudo.
E isso porque ainda não chegamos aos acabamentos. Aí você pode incluir no pacote a sensação de afogamento por enchente ao mesmo tempo em que é devorado por piranhas. Note que ainda tenho mais três meses (numa previsão otimista) até o fim da obra.
Nos últimos dias, estivemos às voltas com a estante da sala, um trabalho que eu compararia em dimensão a Angkor Wat, com prateleiras que ocuparão toda a parede da sala.
Ali eu planejava colocar livros e CDs, álbuns, a aparelhagem de som com woofer, subwoofer, tweeter e equalizador, meus dicionários de línguas, sinônimos, etimologia, expressões idiomáticas, o "Roget's Thesaurus", a "Encyclopedia Britannica", a "Barsa" e a italiana "Enciclopedia Treccani", tudo da maneira mais espartana possível para ir acomodando os livros que virão pela frente.
Mas daí chega a notícia de que, a partir de novembro, o hardware não só será externo como virtual. Muito bem. Já percebi que serei obrigada a operar algumas mudanças. E que não necessariamente devo começar por woofer, subwoofer e equalizador.
Pois então. Se nos próximos dias você vir um saco boiando no Tietê com uma pilha de dicionários colhidos pelo ácaro, CDs de caixinha rachada, DVDs de seriados que nunca mais serão vistos, mais um monte de fitas VHS e até uns floppy discs jogados no meio do embrulho, juro que não fui eu que atirei no rio.
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