Civilidade contagiosa
GILBERTO DIMENSTEIN
FOLHA DE SP - 14/08/11
Um dos fatos sociais mais extraordinários no país foi a redução da taxa de assassinatos em São Paulo
PEDRO ANÍSIO DE LUNA tinha 16 anos e morava em João Pessoa, na Paraíba, quando inventou uma plataforma para a distribuição gratuita de e-mails, ainda inédita no Brasil, depois adquirida por uma grande empresa de telecomunicação. Mudou-se para São Paulo, onde virou empresário. Neste momento, ele está usando seu talento para a informática no desenvolvimento de um aplicativo gratuito para celular destinado a ajudar as pessoas que bebem a evitar acidentes no trânsito.
O aplicativo contabiliza a quantidade de doses ingeridas pela pessoa e, depois de certo limite, aparece o número de telefone de um serviço de táxi. Chama a atenção que, na semana passada, essa invenção -já em funcionamento, mas ainda em testes- começou a ser "viralizada" não por adultos ou autoridades, mas por um movimento de jovens da classe média paulistana, muitos dos quais, até pouco tempo, despreocupados com a relação entre álcool e acidentes de trânsito.
Jovens de uma classe média "descolada" fazendo campanha contra o abuso do álcool são a prova de que a semana passada foi um marco de civilidade contagiosa no Brasil.
Na segunda-feira passada, começou na cidade de São Paulo uma ofensiva do poder público contra os motoristas que desrespeitam os pedestres. Estou convencido de que a lei vai pegar menos por causa da ação da prefeitura do que pelo sinal emitido pelos jovens, decididos a tomar alguma atitude depois da morte do amigo Vitor Gurman, vítima de atropelamento. Some-se a isso a indignação com o motorista de um Porsche que dirigia em alta velocidade e matou uma jovem no bairro do Itaim.
A ação do poder público nada tinha a ver com a dos jovens, apesar de ambas terem, em essência, o mesmo foco: o desrespeito no trânsito. Nessa combinação, porém, está o segredo do contágio que se transforma em políticas públicas duradouras.
As mudanças se sustentam quando os governantes decidem implementar ações percebidas de fato como relevantes pela opinião pública.
Há duas décadas, um pesquisador da Escola de Saúde Pública em Harvard descobriu, vendo radiografias de pulmão, que mulheres que nunca tinham tocado num cigarro, mas tinham maridos fumantes, eram vítimas dos males do fumo. Assim se revelou a existência do chamado fumante passivo. Produzia-se ali o início de um processo que, tempos depois, se transformaria numa cena inimaginável: o cigarro banido até mesmo de bares.
A chave desse processo que contagia grande número de pessoas está exatamente na possibilidade de cooperação. Um dos fatos sociais mais extraordinários do país foi a redução de quase 80% na taxa de assassinatos na cidade de São Paulo desde 1999. É claro que a polícia teve um papel fundamental, mas foram jovens universitários que lançaram a campanha de desarmamento na frente da Faculdade de Direito do largo São Francisco. A taxa de homicídio saiu da linha de epidemia.
Foi necessário o apoio de parte expressiva da opinião pública para que se implementassem políticas destinadas a reduzir a gravidez entre adolescentes. Isso implicou a distribuição de camisinhas, pílulas anticoncepcionais e as chamadas pílulas do dia seguinte. Diversas entidades resolveram entrar no debate, mostrando os efeitos da gravidez precoce até o aumento da violência. Apenas no Estado de São Paulo, em dez anos, foram menos 200 mil nascimentos indesejados.
Se dependesse apenas da vontade dos governantes, teria sido impossível implantar, em todo o país, um sistema de avaliação do desempenho das escolas públicas com divulgação dos resultados. Por trás disso, houve o esforço de muitas lideranças, entre as quais empresários preocupados com a educação.
A consciência da mortalidade infantil veio não por causa de iniciativas oficiais, mas por uma intensa campanha nos meios de comunicação, revelando os números e os mecanismos, fáceis, para evitar tantas mortes. Foi uma entidade que começou sem dinheiro público (a Pastoral da Criança, liderada por Zilda Arns) que ensinou, no interior do Nordeste, como era barato e rápido reduzir a mortalidade de crianças.
Alguns números passam a ser memorizados. A imprensa acompanha sua evolução e, por meio deles, mede a eficiência dos governantes. Apenas nas últimas semanas as pessoas descobriram que, por dia, há dois mortos vítimas de atropelamento em São Paulo. É uma contabilidade que veio para ficar.
Por isso aquele aplicativo, batizado de Pé de Cana, é não só uma brincadeira digital mas o sinal de um novo contágio de civilidade.
O resumo é o seguinte: quanto mais avançam os processos de educação para a cidadania, mais rapidamente ocorrem as mudanças.
PS - Detalhes sobre o movimento dos jovens e o aplicativo de Pedro Anísio estão no catracalivre.com.br.
PEDRO ANÍSIO DE LUNA tinha 16 anos e morava em João Pessoa, na Paraíba, quando inventou uma plataforma para a distribuição gratuita de e-mails, ainda inédita no Brasil, depois adquirida por uma grande empresa de telecomunicação. Mudou-se para São Paulo, onde virou empresário. Neste momento, ele está usando seu talento para a informática no desenvolvimento de um aplicativo gratuito para celular destinado a ajudar as pessoas que bebem a evitar acidentes no trânsito.
O aplicativo contabiliza a quantidade de doses ingeridas pela pessoa e, depois de certo limite, aparece o número de telefone de um serviço de táxi. Chama a atenção que, na semana passada, essa invenção -já em funcionamento, mas ainda em testes- começou a ser "viralizada" não por adultos ou autoridades, mas por um movimento de jovens da classe média paulistana, muitos dos quais, até pouco tempo, despreocupados com a relação entre álcool e acidentes de trânsito.
Jovens de uma classe média "descolada" fazendo campanha contra o abuso do álcool são a prova de que a semana passada foi um marco de civilidade contagiosa no Brasil.
Na segunda-feira passada, começou na cidade de São Paulo uma ofensiva do poder público contra os motoristas que desrespeitam os pedestres. Estou convencido de que a lei vai pegar menos por causa da ação da prefeitura do que pelo sinal emitido pelos jovens, decididos a tomar alguma atitude depois da morte do amigo Vitor Gurman, vítima de atropelamento. Some-se a isso a indignação com o motorista de um Porsche que dirigia em alta velocidade e matou uma jovem no bairro do Itaim.
A ação do poder público nada tinha a ver com a dos jovens, apesar de ambas terem, em essência, o mesmo foco: o desrespeito no trânsito. Nessa combinação, porém, está o segredo do contágio que se transforma em políticas públicas duradouras.
As mudanças se sustentam quando os governantes decidem implementar ações percebidas de fato como relevantes pela opinião pública.
Há duas décadas, um pesquisador da Escola de Saúde Pública em Harvard descobriu, vendo radiografias de pulmão, que mulheres que nunca tinham tocado num cigarro, mas tinham maridos fumantes, eram vítimas dos males do fumo. Assim se revelou a existência do chamado fumante passivo. Produzia-se ali o início de um processo que, tempos depois, se transformaria numa cena inimaginável: o cigarro banido até mesmo de bares.
A chave desse processo que contagia grande número de pessoas está exatamente na possibilidade de cooperação. Um dos fatos sociais mais extraordinários do país foi a redução de quase 80% na taxa de assassinatos na cidade de São Paulo desde 1999. É claro que a polícia teve um papel fundamental, mas foram jovens universitários que lançaram a campanha de desarmamento na frente da Faculdade de Direito do largo São Francisco. A taxa de homicídio saiu da linha de epidemia.
Foi necessário o apoio de parte expressiva da opinião pública para que se implementassem políticas destinadas a reduzir a gravidez entre adolescentes. Isso implicou a distribuição de camisinhas, pílulas anticoncepcionais e as chamadas pílulas do dia seguinte. Diversas entidades resolveram entrar no debate, mostrando os efeitos da gravidez precoce até o aumento da violência. Apenas no Estado de São Paulo, em dez anos, foram menos 200 mil nascimentos indesejados.
Se dependesse apenas da vontade dos governantes, teria sido impossível implantar, em todo o país, um sistema de avaliação do desempenho das escolas públicas com divulgação dos resultados. Por trás disso, houve o esforço de muitas lideranças, entre as quais empresários preocupados com a educação.
A consciência da mortalidade infantil veio não por causa de iniciativas oficiais, mas por uma intensa campanha nos meios de comunicação, revelando os números e os mecanismos, fáceis, para evitar tantas mortes. Foi uma entidade que começou sem dinheiro público (a Pastoral da Criança, liderada por Zilda Arns) que ensinou, no interior do Nordeste, como era barato e rápido reduzir a mortalidade de crianças.
Alguns números passam a ser memorizados. A imprensa acompanha sua evolução e, por meio deles, mede a eficiência dos governantes. Apenas nas últimas semanas as pessoas descobriram que, por dia, há dois mortos vítimas de atropelamento em São Paulo. É uma contabilidade que veio para ficar.
Por isso aquele aplicativo, batizado de Pé de Cana, é não só uma brincadeira digital mas o sinal de um novo contágio de civilidade.
O resumo é o seguinte: quanto mais avançam os processos de educação para a cidadania, mais rapidamente ocorrem as mudanças.
PS - Detalhes sobre o movimento dos jovens e o aplicativo de Pedro Anísio estão no catracalivre.com.br.
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