A reforma da "bomba-relógio"
CID HERACLITO DE QUEIROZ
O Estado de S.Paulo - 28/07/11
A reforma tributária "fatiada", ou em etapas, que gerou expectativas otimistas, dará lugar, segundo a imprensa, com base em fontes oficiais, à reforma da "bomba-relógio", a que fará "explodir" a Previdência Social, patrimônio dos trabalhadores e que tem sido, em nosso país, graças à contribuição dos empregadores, um instrumento indispensável à paz social. Numa inaceitável demonstração de descoordenação entre setores da administração e inobstante as diretrizes presidenciais no sentido da integração governamental, o Ministério da Fazenda, ao arrepio da área da Previdência, teria acolhido proposta para eliminar a contribuição previdenciária patronal, constitucionalmente obrigatória desde a Carta de 1934, e substituir a respectiva receita por mais um imposto incidente sobre o faturamento das empresas.
A proposta, todavia, é, financeira e tecnicamente, insustentável e provocará um desnecessário desgaste político para o governo. No que tange ao ângulo financeiro, a reforma manterá a mesma carga tributária sobre as empresas, pois o imposto com base no faturamento terá de proporcionar receita idêntica à que deriva das contribuições previdenciárias patronais, estimada, no corrente ano, em cerca de R$ 240 bilhões. Como bem acentuou editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 2/6 (Desoneração e reforma, A3), "será inútil, do ponto de vista da eficiência econômica, trocar a contribuição sobre a folha por um tributo de outro tipo".
Sob o aspecto técnico, a proposta é realmente, uma "bomba-relógio", que "implodirá" o sistema previdenciário brasileiro, estruturado pela Constituição de 1988, a qual, sensível à natureza do seguro social, prescreveu, no seu artigo 165, parágrafo 5.º, a separação entre o orçamento fiscal e o orçamento da seguridade social, este "abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo poder público". Ao orçamento fiscal devem afluir as receitas provenientes de impostos e taxas e as receitas patrimoniais e de capital, para custear as despesas com a ação dos três Poderes da União, notadamente as de custeio e de investimentos. Ao orçamento da seguridade social devem afluir as receitas oriundas das contribuições previdenciárias dos empregados e dos empregadores e as contribuições sociais pagas pelas empresas, com base no faturamento (Cofins) e no lucro (CSLL), para custear todas as ações nas áreas da Previdência, da Assistência Social e da Saúde.
"Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo regime geral da previdência social, em adição aos recursos de sua arrecadação", o artigo 250 da Constituição autoriza a União a "constituir fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desse fundo".
Uma vez implementado esse fundo, pelo menos em relação aos trabalhadores da área urbana, as respectivas receitas e despesas previdenciárias deixarão de figurar no Orçamento da União, à semelhança do que ocorre com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), cujos balanços são elaborados pela Caixa Econômica Federal, que o administra, e não integram a receita, nem a despesa, da União. O fundo previdenciário seria gerido, em conjunto, por trabalhadores, empregadores e governo, operaria por intermédio de uma entidade bancária oficial, aplicaria, no mercado financeiro, as suas disponibilidades de caixa e seria integrado, ainda, por bens que lhe sejam transferidos pela União, como, por ser de justiça, imóveis pertencentes ao INSS, construídos com as receitas das contribuições previdenciárias.
Nos dias atuais, a implementação desse fundo mais se justifica, dada a feliz circunstância de que, há alguns meses, a previdência dos trabalhadores urbanos vem apresentando sucessivos superávits. Já a previdência dos produtores e trabalhadores rurais continua extremamente deficitária - a receita cobre apenas cerca de 10% da despesa - e terá de ser financiada, sob pena de causar intranquilidade na área rural, pelas dotações da assistência social, com o produto da receita da Contribuição Social para o Financiamento de Seguridade Social (Cofins) - denominação autoexplicativa - e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Vale notar que a Carta de 1988 incluiu na Previdência Social cerca de 6 milhões de trabalhadores e produtores rurais que nunca recolheram nenhuma contribuição previdenciária. E, agora, anuncia-se a inclusão, nesse modelo, dos indígenas brasileiros, com aposentadoria no valor de um salário mínimo.
Por conseguinte, a proposta da "bomba-relógio", a par de ignorar a estrutura da Previdência Social brasileira, resultará, sem dúvida, na "implosão" do sistema, intranquilizando milhões de segurados ativos, inativos e pensionistas, e também constituirá um desserviço ao próprio governo.
Por outro lado, foi noticiado que o governo está elaborando projeto de lei para enquadrar nas normas da Lei de Responsabilidade Fiscal relativas à transparência a contabilidade das renúncias a receitas previdenciárias. Assim, seriam adequadamente imputados aos orçamentos dos Ministérios competentes os valores das renúncias referentes a entidades filantrópicas, empresas exportadoras, pequenas e microempresas, clubes de futebol, etc., num total, neste exercício, de mais de R$ 20 bilhões. E seriam separadas, como se impõe, as contas da previdência urbana e da previdência rural, o que possibilitará análises mais corretas do nosso sistema previdenciário, sem as inadequadas comparações com o produto interno bruto (PIB) de receitas reduzidas por renúncias e despesas oneradas por assistencialismo social.
ADVOGADO, FOI PROCURADOR-GERAL DA FAZENDA NACIONAL (1979-1991)
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