quarta-feira, julho 13, 2011

ANTONIO PRATA - Assoando o nariz


Assoando o nariz
ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 13/07/11

"Estou gripado. Faz uma semana que meu nariz escorre ininterruptamente, como a nascente de um rio, ou explode em tonitruantes espirros, como um vulcão desativado que, após anos de silêncio, retoma suas atividades.
Eu não deveria me incomodar com a fúria da natureza: durante toda a infância e a adolescência, a rinite alérgica foi minha fiel companheira. Por quase duas décadas, andei por aí com rolinhos de papel higiênico enfiados nos bolsos, escravo das vias que, não satisfeitas por serem aéreas e superiores, queriam também ser hídricas -e conseguiam: essas narinas anfíbias, inundadas como um brejo, coaxantes como sapos.
Foi na passagem para a idade adulta, meio que de uma hora pra outra, que o nariz parou de me atormentar e resolveu resignar-se às duas únicas funções para as quais veio ao mundo: respirar e meter-se onde não é chamado.
Não sei nada de medicina e desconfio das relações que o senso comum costuma tecer entre doenças e estado de espírito; provavelmente o fim concomitante da rinite e da adolescência tenha sido mera coincidência, mas sinto como se o bem-vindo estio nasal tivesse a ver com uma mudança de postura, certo ganho de confiança, capacidade de olhar as coisas (um pouco mais) de frente, fruto da maturidade.
Assoar o nariz, como usar chapéu ou fazer piadas, é uma forma de proteger-se do mundo. Uma pequena covardia, um ato de autossabotagem. Durante os segundos em que se usam as narinas como corneta, fica-se temporariamente isento de quaisquer responsabilidades. Impossível dar em cima de uma garota e assoar-se ao mesmo tempo. Contar uma história, não dá. Jogar bola, sem chances. Bater boca, fora de cogitação. Neurose das mucosas: por conta de um mero grão de pólen, um pelo de gato, um ácaro acariciando a parede das fossas nasais, o sistema imunológico decide ativar o alarme, grita "Fogo! Fogo!" e liga os sprinklers, inundando caixas e caixas de lenços de papel.
Por essas e outras, sempre acreditei que assoar o nariz é um vício da vida contemplativa. Como se o embotamento de nosso sentido mais animal, o olfato, fosse pré-requisito para a negação do corpo e a opção pelo intelecto: não sinto, logo penso, logo existo. Difícil imaginar um general com rinite alérgica. Ou um piloto de F-1. Charles Bronson deve ter espirrado só duas ou três vezes -e na infância. Já escritores, humoristas, filósofos, vejo-os todos com uma pequena pirâmide de papel higiênico amassado ao lado de suas poltronas. Woody Allen é praticamente só nariz. E Groucho Marx, então? Veja um retrato de Descartes: é evidente que ele está segurando um espirro.
Nesses últimos sete dias de gripe, me senti transportado de volta à adolescência. A uma festa em 1993, em que, sentado numa mesa no canto, via a garota dos meus sonhos sendo xavecada por um boçal de boné para trás e não podia fazer nada: não com o nariz naquele estado, não me assoando e limpando as caspinhas de papel caídas na camiseta. "Quem sabe mais pra frente?", eu pensava, fazia alguma piada e voltava a cuidar dos meus assuntos: sssrrrrrruuuuummmmfffffchhhhh."

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