Não vale o escrito
DORA KRAMER
O Estado de S.Paulo
Enquanto a sociedade, o governo e o Congresso brasileiros continuarem a enxergar a Constituição como um pormenor, não há o menor risco de o País funcionar a contento, dentro das balizas de razoável modernidade e civilidade.
Isso sob diversos aspectos a respeito dos quais se estabelecem discussões prolongadas, improdutivas e cansativas.
Um desses temas intermináveis é o uso das medidas provisórias, sempre abusivo por parte de todos os governos desde a sua criação, na Constituinte de 1988, para dar ao Poder Executivo um instrumento rápido de decisão que permitisse lidar com situações urgentes e resolver questões relevantes.
Não por outro motivo estão descritos na Constituição os casos em que o presidente da República pode recorrer às medidas. Quaisquer que sejam, o texto é claro ao exigir que se observe se há urgência e relevância no propósito do governante ao tomar uma decisão com força de lei e eficácia jurídica imediata.
Justamente para respeitar o princípio do equilíbrio entre os Poderes é que a Constituição confere ao Congresso a prerrogativa de aceitar ou não que as MPs possam prosperar.
O Executivo manda, mas se o Legislativo não achar que sejam adequadas, elas podem ser devolvidas.
Do contrário, a Constituinte teria conferido ao presidente poderes autocráticos não condizentes com a cláusula pétrea que faz do Brasil uma República.
Parece bastante simples, mas tornou-se extremamente complicado por causa do raquitismo do Legislativo frente ao gigantismo do Executivo.
No começo o abuso era só na quantidade. Agora a exorbitância inclui medidas sobre temas vedados pela Constituição, como créditos complementares, e o enxerto de assuntos desconexos. Uma das últimas chegou ao Congresso com 13 assuntos diferentes e depois das emendas ficou com 26.
O Supremo Tribunal Federal, embora já provocado a respeito, hesita em dar uma palavra definitiva para alegadamente não interferir na relação entre Executivo e Legislativo.
O Congresso de vez em quando propõe mudanças no rito de tramitação das MPs, como agora em proposta de José Sarney e substitutivo negociado pelo relator Aécio Neves.
Anos atrás, quando Aécio era presidente da Câmara, foi feita uma modificação obrigando o Congresso a examinar as medidas sob pena do trancamento da pauta de votações.
Não resolveu o problema do abuso. De um lado, porque o então governo Fernando Henrique Cardoso usou sua maioria para assegurar a ação quase ilimitada do Executivo.
De outro, porque essa mesma maioria impedia que se fizessem as coisas corretamente: exame uma a uma das medidas em comissão especial de admissibilidade e aceitação apenas daquelas realmente urgentes e relevantes.
O tempo passou e a deformação só fez aumentar. A ponto de a atual proposta sugerir como "modificação" a criação de uma comissão especial de admissibilidade.
Pior: o governo se recusa a aceitar, os senadores concordam e ainda celebram a hipótese de conseguirem aprovar alterações de prazo para exame das MPs na Câmara e no Senado.
Vai se falar em "mais um passo", mas não é passo algum na direção do enfrentamento sem disfarces da questão crucial.
E qual seria ela? A existência de um conluio de inconstitucionalidade que só será rompido quando o governo, o Congresso e a sociedade compreenderem que não há nada mais relevante que a Constituição e nada mais urgente que o imperativo de cumpri-la à risca.
Fora disso não há solução: melhora-se daqui, remenda-se dali e o resultado será a inutilidade de sempre.
Parece mentira. A presidente conseguiu deixar a oposição perplexa e a situação indignada com a nomeação de Ideli Salvatti para cuidar da articulação política.
Resta saber aonde Dilma quer chegar com isso. O PMDB, evidente, elogia. Quanto mais desarticulado estiver o Planalto no Congresso, mais a Presidência precisará recorrer ou aos préstimos do vice Michel Temer ou à influência de Lula.
Nas duas hipóteses, Dilma é quem mais perde capital de confiança na sua capacidade de conduzir um governo de coalizão.
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