Não esquecer
ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK
O Estado de S. Paulo - 27/05/2011
São fatos assustadoramente recentes. Afinal, foi há apenas 16 anos que o País se livrou do devastador regime de alta inflação com que penou por uma década e meia. E, no entanto, a memória das enormes dificuldades que tiveram de ser enfrentadas nesse período tão longo vem sendo rapidamente perdida. Fascinado com o futuro, o País parece propenso a se esquecer do passado recente e das inestimáveis lições que dele pode extrair. O novo livro de Miriam Leitão, Saga Brasileira, lançado pela Editora Record, é um esforço notável de resgate dessa memória.
Ano após ano, tenho notado que meus alunos se mostram cada vez menos informados sobre a real extensão das dificuldades que o descalabro macroeconômico dos anos 80 trouxe ao País. Quando faço menções a esse período - manancial inesgotável de patologias que merecem atenção -, logo se interessam em saber mais detalhes e tentar compreender como as coisas puderam chegar ao ponto a que chegaram. Mas o interesse que demonstram deixa transparecer surpreendente distanciamento. É o mesmo interesse que poderiam ter demonstrado pela hiperinflação de 1923 na Alemanha. Sem o mínimo de comoção que se poderia esperar de quem se dá conta de que eventos tão graves ocorreram, de fato, no Brasil, e há muito pouco tempo. Eventos dramáticos que tantos transtornos trouxeram à geração de seus pais, mas sobre os quais não se haviam inteirado. É como se - em casa, no colégio e na mídia - tivessem sido poupados dessa memória incômoda.
O livro de Miriam Leitão é um antídoto contra tal esquecimento. Quem puder deve lê-lo de capa a capa. Quem não tiver tempo para enfrentar as quase 500 páginas pode ler capítulos isolados. Um bom ponto de partida são as 34 páginas do capítulo 8, que trata da fase mais virulenta do regime de alta inflação, no final do governo Sarney. Ou as 60 páginas do capítulo 9, sobre o Plano Collor. É bem provável que quem começar por aí fique tentado a ler muitos outros capítulos.
Por sorte, trata-se de um livro bem diferente do que teria sido escrito por um economista. Longe de se ater ao exame frio dos dados, a análise vem entremeada com rico mosaico de relatos de dificuldades concretas que o longo convívio com o regime de alta inflação impunha a pessoas de carne e osso. E o clima de incerteza e sobressalto que então se vivia reaflora com nitidez, quando rememorado por uma jornalista que recorrentemente se viu obrigada a tornar inteligível para seus leitores, da noite para o dia, a interminável sequência de medidas arbitrárias envolvidas em planos de estabilização com efeitos cada vez mais efêmeros.
Mas o livro não se resume à análise da deprimente situação a que o País chegou nos anos 80. Em paralelo, Miriam Leitão relata também uma história profundamente edificante: a do sucesso da mobilização da sociedade brasileira com a ideia de extinguir de vez o regime de alta inflação. Um caso exemplar de ação coletiva eficaz, em torno de um esforço de construção institucional que desemboca no Plano Real e ganha força com o círculo virtuoso que se instala no processo político a partir de 1994. Sem memória nítida da real extensão do descalabro macroeconômico dos anos 80, o País estará fadado a se esquecer também desse notável esforço de ação coletiva, do qual deveria se orgulhar.
Em que medida esse esquecimento precoce vem sendo estimulado pelo discurso oficial que se consolidou em Brasília nos últimos oito anos e meio? Tendo desempenhado um papel lamentável, de permanente obstrução, no intrincado esforço que culminou na estabilização da economia, o PT jamais teve interesse em rememorar as terríveis dificuldades impostas pelo regime de alta inflação e, muito menos, em ressaltar os méritos desse esforço. Em Brasília, a história econômica do Brasil foi reinicializada. 2003 passou a ser o ano zero. É hora de deixar para trás as mesquinharias partidárias e aguçar a memória do País sobre os 25 anos anteriores, que encerram lições para a política econômica que jamais podem ser esquecidas.
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