Aldrovando Cantagalo
RICARDO SALLES
O GLOBO - 27/05/11
Assim se chamava o filho de um escrevente de cartório, em Itaoca, SP, personagem de "O colocador de pronomes", de Monteiro Lobato. Aldrovando nascera de um erro de gramática. O escrevente, ao mandar um bilhete apaixonado para a filha de um certo coronel Triburtino, escreveu "amo-lhe". Como o coronel, que interceptara a missiva, tinha duas filhas, uma - aquela cuja mão desejava o pai de Aldrovando - linda e elegante e outra muito feia e já tida como o encalhe da família, sua reação foi dar-lhe a mão da feia. Argumentava o astuto coronel que "lhe" é pronome de terceira pessoa e, assim, a amada não era a destinatária, mas outra moça que morava na mesma casa. Intimidado, o escrevente acabou se casando com a personificação da feiura e, como fruto dessa união, Aldrovando veio ao mundo.
Aldrovando, na falta de um objeto amado que, ao menos, respirasse, desde garoto se apaixonou por um livro de gramática. Aos 40 anos, sempre recluso, já tinha lido todos os clássicos da língua portuguesa, sabia de cor obras inteiras, mas nada sabia do mundo. Muito zeloso da boa norma gramatical, praguejava contra "regionalismos de má ressonância" e a "garabulha bordalenga que estampam os periódicos"; com energia invulgar, não deixava passar um galicismo, para ele, "um perene barbarizar com alienígenos arrevesos". Abrindo campanha contra os "ácaros do idioma", peticionou ao Congresso exigindo leis visando à repressão das formas impuras. "Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade", bradava o cioso beletrista. Com descortino de gênio, profetizava um futuro pouco risonho para a língua de Vera Cruz.
Parece que ultimamente foi exumado e levaram seus restos a algum feiticeiro que, a pedidos, vem tentando ressuscitá-lo.
O barulho que se tem feito em torno de umas poucas linhas de um capítulo de um livro didático de português para adultos, a ser utilizado em comunidades carentes, onde, com frequência, se fala fora da norma oficial da língua portuguesa, é digno do paladino da boa fala.
Condena-se, com muita energia (e, às vezes, com boa dose de leviandade), a autora do capítulo 1 do livro "Por uma vida melhor", distribuído pelo MEC a escolas públicas de todo o país. Mas a coisa é muito esquisita: a moça é acusada pelo que não fez!
Com efeito, a autora tece considerações a respeito de formas agramaticais empregadas em certos meios e diz que, embora se possa falar assim - e ser entendido, faltou ela dizer -, tais formas estão em desacordo com a norma gramatical que prevalece. Lembra a autora que, em certos meios e em determinadas circunstâncias, isso pode levar o falante a ser discriminado e a sofrer consequências desagradáveis na vida prática. Deveria ela fazer de conta que não existe esse falar para que a realidade mudasse? Algo como evitar de falar do diabo para que ele não apareça?
Enfatize-se que o livro se destina a pessoas que vivem em comunidades onde é comum falar variantes da língua portuguesa em que são abundantes as formas agramaticais, especialmente no que se refere a concordância nominal e verbal, sem qualquer prejuízo do perfeito entendimento, convém assinalar. Nos exemplos dados pela autora (como, por exemplo, "os menino pega os peixe"), não se pode dizer que a expressão é ilógica, obscura ou dúbia. A mensagem transmitida, mesmo em desacordo com a gramática, é clara. A variante, portanto, é válida e não pode ser ignorada. Nem se acuse a autora de fazer apologia do erro, pois ela mesma diz que as formas citadas não estão de acordo com as normas da gramática e, nos exercícios (4, 5 e 8, em especial), pede que o aluno faça as correções devidas, de modo a que a norma oficial seja entendida e aprendida. Tudo isso feito sem preconceitos e com naturalidade, de maneira a não constranger o adulto que pode estar acostumado a falar (e, claro, ouvir) desse jeito.
Não consiga, porém, o bruxo trazer Aldrovando de volta a este Vale de Lágrimas; que ele possa repousar eternamente no sono dos justos.
Afinal, o apóstolo , fruto de um erro de gramática, morreu por conta da má colocação de um pronome. Depois de abrir um "Consultório Gramatical" e uma "Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos", iniciativas empresariais que não lograram o esperado e devido êxito, nosso herói se debruçou com ímpeto apaixonado sobre o que veio a ser sua obra-prima: um tratado, em três volumes e 1.500 páginas, sobre a colocação de pronomes. Dedicou-a, com essas palavras, a Frei Luís de Souza: "À memória daquele que me sabe as dores"; o tipógrafo, no entanto, alterou a frase para fazê-la a seu modo: "À memória d"aquele que sabe-me as dores." Aldrovando, deparando com o novo texto, ao escrever um oferecimento do livro a Rui Barbosa, sofreu um infarto fulminante.
Coitado...
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